Opinião
Ainda sobre o impasse econômico histórico do capitalismo mundial, por François Chesnais
François Chesnais – Traduzido por Allan Kenji Seki – para o Universidade à Esquerda
Publicado por A l’encontre em 20 de fevereiro de 2019, Disponível em: https://alencontre.org/economie/de-nouveau-sur-limpasse-economique-historique-du-capitalisme-mondial.html
O presente artigo situa a crise política e social francesa no contexto do momento histórico do capitalismo mundial, dimensão quase completamente negligenciada pela grande maioria das análises sobre o movimento dos Gilets Jaunes (“coletes amarelos”). Contribui ainda para compreendermos a gravidade da crise em curso.
A incapacidade da economia mundial de encontrar um caminho de crescimento mais de dez anos após o estouro da crise econômica e financeira de 2007/2008 representa um longo período de “pane” do motor de acumulação de capital. Esse processo precisa ser compreendido no contexto da financeirização e da globalização, em outras palavras, no contexto da plena realização do “mercado mundial” [1] e da mundialização do capital sob suas três formas – capital produtivo, capital comercial e capital monetário – que inaugurou, a partir dos anos 1990, uma fase específica da história do capitalismo, em desdobramento do seu estágio imperialista [2].
Uma das características da financeirização é o distanciamento entre as taxas de crescimento dos direitos de saques (droit de tirage) sobre o mais-valor produzido – aqui mensurado pelo Produto Interno Bruto (PIB) mundial. Para demonstrar a dimensão disto, dispomos de alguns dados gerais. Em artigo publicado em 2017 no A l’encontre [3] utilizei alguns dados do instituto McKinsey Global e do Banck for International Settlements (BIS) e no texto de novembro de 2018 [4] dados relativos aos efeitos nos títulos mundiais. Para os propósitos deste artigo, relembro alguns dos indicadores do McKinsey. Esses dados dizem respeito ao crescimento, em Trilhões de dólares e em percentagem do PIB mundial dos direitos de saques sobre o mais-valor para aqueles que os possuem, a saber quatro grandes categorias de ativos financeiros: ações, obrigações privadas, títulos de dívidas públicas e linhas de créditos bancários remunerados à juros, estimados em valor de mercado (no caso das ações, a capitalização através das bolsas de valores situadas nas grandes praças financeiras).
Gráfico 1 – Crescimento dos ativos financeiros mundiais em Trilhões de dólares a taxas de câmbio de 2011 (curva azul, medida no eixo à direita) e em percentagem do PIB mundial (linha vermelha, medida no eixo à esquerda)
Passados os primeiros anos nos quais deu-se início a financeirização, os direitos de saques sobre o mais-valor produzido cresceram em um ritmo impressionante: uma taxa média de 9% entre 1990 e 2007 (+18%). Em 2007, a relação entre os ativos financeiros e o PIB mundial alcançou 376%. Esses vinte anos de crescimento exponencial só foram interrompidos pela crise financeira de 2008. Em seguida, graças, primeiramente aos direcionamentos dos investimentos aos “países emergentes” e, em seguida, ao novo recurso ao endividamento intensivo, o crescimento dos ativos financeiros está retornando ao topo – muito embora a McKinsey chame isso de uma taxa anêmica de 1,9%”.
Gráfico 2 – Taxa de crescimento real anual do PIB mundial
O que o gráfico 2 demonstra é que o que realmente é anêmico é o crescimento do PIB mundial. E é justamente sobre isso que pretendo tratar neste artigo.
CAPITAL-MONETÁRIO PORTADOR DE JUROS E CAPITAL PRODUTIVO, DOIS PROCESSOS DE ACUMULAÇÃO DISTINTOS
Meu ponto de partida é uma observação feita por Marx na longa seção do Livro III do Capital editada por Engels chamada “Cisão do lucro entre juros e lucro empresarial”. Essa seção inclui três capítulos intitulados “Capital monetário e capital real”. O segundo deles começa por uma observação quase despercebida, segundo a qual “a transformação do dinheiro em capital monetário emprestável é um processo muito mais simples que o da transformação de dinheiro em capital produtivo” [5]. Nós poderíamos estender essa afirmação hoje dizendo que é muito mais fácil identificar os mecanismos que atuam na origem do crescimento dos direitos de propriedades sobre o mais-valor produzido do que explicar a lentidão do crescimento da massa de mais-valor em todo o mundo.
No que diz respeito ao primeiro elemento, a intensificação do processo de acumulação do capital monetário que pretende se valorizar sobre a forma de juros, dividendos e ganhos especulativos incluiu sucessiva e cumulativamente (1) estabelecer mecanismos de reprodução contínua das dívidas publicas inicialmente contratadas (tanto aquelas dos países semicoloniais do terceiro mundo, como aquelas mais tarde produzidas nos países industrializados), (2) a centralização das poupanças salariais obtidas através da capitalização dos sistemas de aposentadorias (fundos de pensões), (3) investimentos financeiros das rendas de propriedades e de capitais não consumidos dos ricos e muito ricos e, enfim, (4) a partir de 1985, por um influxo crescente de lucros não reinvestidos nos grandes grupos financeiros industriais (produção manufatureira e serviços), isso que é chamado pelos economistas marxistas e heterodoxos anglófonos como entesouramento forçado (corporate forced hoarding). A diferença nas curvas apresentadas no gráfico 3, a seguir, ilustra essa amplitude. O significado disso será explicado mais adiante.
Gráfico 3 – Lucros e investimento líquido não residencial em percentagem do Produto Interno Bruto (Estados Unidos, 1965-2006)
Fonte: Elaborado por Foster, J. B.; MAGDOFF, F. Financial Implosion and Stagnation. Monthly Review, dec. 2008; com dados do Bureau of Economic Analysis, National Income and Product Accounts, Table 5.2.5. Gross and Net Domestic Investment by Major Type, (Billions of dollars). Table B-1 (GDP) and Table B-91 (Domestic industry profits), Economic Report of the President, 2008.
Ao contrário do que muitos pensam, o processo de acumulação do capital monetário não é desencarnado. Pelo contrário, ele ganha corpo nas diferentes formas de organização da gestão dos fundos e das fortunas privadas, assim como na gestão dos grupos financeiros predominantemente industriais lato sensu (os “grupos financeiros não-financeiros”). Todo esse corpo de gestores tem como único e principal objetivo assegurar os recebíveis, ou seja, a regularidade dos pagamentos de juros e a maior distribuição possível dos dividendos das empresas aos acionistas.
O MOVIMENTO DO CAPITAL PRODUTIVO DE MAIS-VALOR NO LONGO PRAZO
Neste artigo, o movimento do capital produtivo (capital que produz mais-valor) refere-se a um processo mais amplo do que a simples evolução das taxas de lucros, sobre a qual alguns marxistas bastante “produtivos”, notadamente Michael Roberts, enfatizam quase que exclusivamente.
A noção de movimento do capital produtivo faz referência a todos os investimentos rentáveis e se apresenta de forma concomitante sobre o conjunto de indústrias de setores de infraestrutura, visto que os investimentos feitos em cada um deles cria fortes efeitos retroativos e cumulativos entre todos eles. Na história do capitalismo, esses momentos se situam precisamente no início daquilo que os marxistas costumam chamar de “ondas longas” de acumulação [6]. Elas são o resultado de massivas transformações tecnológicas (como a primeira e a segunda revolução industriais [7]) e acompanhadas de fases de grande expansão do mercado. Nesse sentido, os impulsos externos do século XIX foram tanto transoceânicas (como a India, a Argentina etc.) como continentais (a “fronteira” estadunidense). Já no século XX, as fases de maior expansão de mercado, englobando um largo conjunto de indústrias e setores, ocorreu após as duas guerras mundiais (como no caso daquela de 1939-1945).
Hoje, a situação é completamente distinta. Após a incorporação da China ao mercado mundial, já não existe mais uma outra “fronteira” no capitalismo a não ser a sua própria, em direção ao interior da integração das nações no sistema, mas cujos efeitos são cada vez menos operativos, ao mesmo tempo em que as condições políticas para uma nova guerra mundial (uma preparação ideológica como aquela realizada pelo nazismo antes de 1933) não está em curso atualmente. Hoje, o único ponto de partida anunciado para uma nova onda longa seriam as novas tecnologias que aparentemente exigiriam, por suas próprias características, investimentos elevados, que criassem uma quantidade significativa de empregos, mas ainda fossem capazes de elevar a produtividade do trabalho, incorporando no processo de trabalho equipamentos que integrassem essas tecnologias.
Utilizando o indicador sobre o fator global de produtividade, considerado como um dos que incorporam parcialmente os efeitos do progresso tecnológico (Cf. figura a seguir), um dos cronistas mais escutado da Bloomberg publicou um gráfico no qual ele se interroga sobre o que viria a ser essas tecnologia e qual seria o seu efeito no crescimento econômico. Assim, relembrando que o crescimento da taxa de produtividade depende em parte do crescimento econômico global e dos investimentos, o autor se coloca a questão: qual delas teria a precedência sobre a outra?
Gráfico 4 – Liderando ou seguindo? Maior crescimento da produtividade parece estar relacionado a um crescimento econômico mais rápido
Fonte: Federal Reserve Bank of St. Loius, elaborado por Smith, Noah. Maybe we have the economic-growth equation backward. Boomberg Opinion, 2018. Disponível em: https://bloom.bg/2k7ctpP, acesso em: 9 de set. 2019
Curiosamente, em seu comentário, o autor substitui a palavra “parece” (“seems”, no original) no subtítulo do gráfico por uma posição afirmativa, na qual o fundamento teórico encontra-se na teoria econômica heterodoxa de Nicholas Kaldor (1908-1986), um dos principais sucessores de Keynes em Cambrigde e crítico vigoroso da teoria do crescimento neoclássica. É nesse quadro que se situa o Gráfico 3. Um nível de investimento inferior ao dos lucros em termos percentuais do PIB é a fonte não apenas de uma elevação relativa da massa do capital monetário que busca se valorizar unicamente nos mercados financeiros como também de uma perda do ganho de produtividade, visto que essa só pode se materializar através de novos investimentos de capitais.
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A produtividade
A produtividade é a relação entre as quantidades de produtos (ou seus valores adicionados) e os meios colocados em atividade para obtê-los. A produtividade do trabalho pode ser calculada per capita (valor adicionado/número de trabalhadores) ou por horas de trabalho realizadas (valor adicionado/número de horas trabalhadas). Ela depende do aumento das qualificações dos trabalhadores, de suas formações (o que lhes permite se adaptarem mais rapidamente às mudanças tecnológicas), da forma de organização do trabalho ou de uma maior motivação dos trabalhadores. Do mesmo modo, a produtividade aparente do capital mede a relação entre o valor adicionado e o capital fixo mobilizado. Esse indicador mede a eficácia do capital durante um período de utilização mais significativo no qual, por incorporação de equipamentos com melhor desempenho, podemos ver os efeitos da aprendizagem (o trabalhador melhora sua eficácia pela prática cotidiana da sua atividade).
Há, contudo, diversos problemas para encontrar uma medida razoável que explique a produtividade na composição do PIB.
A produtividade global dos fatores de produção mensura a relação da produção, medida pelo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), em relação ao conjunto dos fatores utilizados para obtê-lo. Desse modo, se, durante um dado período, o crescimento médio anual do PIB é de 1,8% e o aumento do fator trabalho (número de horas totais trabalhadas) é responsável por 0,2 pontos destes 1,8% ao passo que o aumento do volume do capital explica 0,7%, então, a produtividade global dos fatores responde pelo resto do crescimento, ou seja, 1,8 – 0,2 – 0,7 = 0,9 ou, aproximadamente, 1 ponto. A produtividade global dos fatores é o resíduo não explicado do acréscimo: a convenção é que o progresso técnico seja explicado por meio dele.
Em um artigo de março de 2018, Husson escreve que “é preciso um retorno à definição da produtividade do trabalho: ela deveria medir o ‘volume’ de bens e serviços produzidos em uma hora de trabalho. Como esse volume é calculado nas contas nacionais? Eles fazem a soma do volume de negócios de todas as empresas e subtraem o consumo intermediário (negócios entre empresas) e obtém o PIB expresso em euros, a preços correntes ou valor. Para obter um volume é preciso um índice de preços”. “Eis que” – explica Husson – “aparecem os formidáveis problemas metodológicos porque a própria natureza dos produtos muda com o tempo. Como é possível, por exemplo, comparar um smartphone de hoje em dia com um telefone de fio de 30 anos atrás? Os preços deveriam, portanto, ser ajustados para levar em conta os ‘efeitos-qualidade’ que correspondem a essas mudanças de natureza.
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Feitas essas considerações, utilizando o indicador dado sobre o fator global de produtividade, considerando que esse indicador incorpore em parte os efeitos do progresso tecnológico, o cronista da Bloomber publicou o gráfico a seguir cujo título, “A Sputtering Engine of Growth”, não contém ambiguidade.
Gráfico 5 – Um Motor de Crescimento Fumegante (Sputtering Engine of Growth, em inglês)
Fonte: Federal Reserve Bank of St. Loius, elaborado por Smith, Noah. Maybe we have the economic-growth equation backward. Boomberg Opinion, 2018. Disponível em: https://bloom.bg/2k7ctpP, acesso em: 9 de set. 2019
O cronista da Bloomberg indica que seu gráfico cobre o período de introdução das tecnologias de informação e comunicação (TIC), confirmando aquilo que ele nomeia como “paradoxo de Solow”. De fato, desde o fim dos anos 1980, o economista americano Robert Solow havia constatado que “podemos ver os computadores por todos os lados, exceto nos indicadores de produtividade” [8]. Mais recentemente, Patrick Artus, lhe fez eco: “não compreendemos bem por qual razão, apesar do desenvolvimento digital, dos esforços em pesquisa e inovação, os ganhos de produtividade diminuem e o crescimento de longo prazo definha, em síntese, nós não sabemos mais analisar a situação de longo prazo das economias” [9].
As TICs de fato operaram uma reconfiguração radical da organização do trabalho bem como grande parte da vida cotidiana das pessoas. Elas se propagaram por todas as atividades e são constantemente aperfeiçoadas [10]. Sob o ângulo da coleta e análise de dados em massa, as tecnologias de informação e de comunicação fornecessem efetivamente ao Estado e ao capital uma capacidade sem precedentes de controle político e social e, nesse sentido, estamos lidando com a “terceira revolução industrial” – como gostam de chamar os teóricos neo-schumpteterianos. No entanto, todas as características das TICs, principalmente em termos de como esses investimentos funcionam efetivamente, impossibilitam que sejam portadoras de uma nova onda longa na medida em que servem substancialmente para “economizar trabalho”. As TICs são labour saving, frequentemente de maneira brutal. Hoje nos encontramos plenamente em uma situação diagnosticada há trinta anos por Mandel, em sua análise sobre as consequências daquilo que ele chamou de “robotismo”, à época ainda em seus primeiros dias. A perxplexidade de Artus, portanto, encontra sua resposta inexorável no fato de que “a extensão da automatização além de um certo limite leva, invevitavelmente, primeiro a uma redução do volume total do valor produzido e, em seguida a uma redução do volume do mais-valor realizado [11].
A APRECIAÇÃO DA SITUAÇÃO ESTADUNIDENSE NO TRABALHO AMERICANO
Em outro nível analítico, os trabalhos sobre os Estados Unidos de economistas e sociólogos heterodoxos americanos, muito pouco conhecidos na França, explicam que os fatores que impulsionaram o crescimento econômico durante a maior parte da história norte-americana estão, em grande medida, esgotados. O sociólogo Tyler Cowen fala de um “platô tecnológico” e do fim de uma era na qual “os frutos do crescimento eram fáceis de serem colhidos” e que, portanto, este era acelerado [12]. Em um livro que está mais no centro do debate em razão de seu enorme conjunto estatístico [13], Robert Gordon sustenta que a força de crescimento da economia americana entre 1870 e 1970, momentaneamente interrompida durante a Grande Depressão, porém rapidamente retomada pela produção armamentista a partir de 1942, foi uma longa fase que não pode mais ser repetida. Em um raro texto que pode ser consultado em francês, Gordon relembra que “grandes invenções se combinaram para oferecer aos americanos o acesso a água corrente, a eletricidade, ao telefone. O carro revolucionou os transportes. Os progressos deslumbrantes da medicina aumentaram a expectativa de vida. Essas transformações foram acompanhadas de uma alta muito elevada da produtividade per capita e de uma taxa de crescimento que durou um século”. Ele prossegue, afirmando que “depois dos anos 1970, há sempre novas inovações. Mas a produtividade global dos fatores, que mede a parte do crescimento ligado ao progresso técnico, se enfraqueceu. A terceira revolução industrial se limita a uma esfera estreita – principalmente o setor de entretenimento e de informação e comunicação –, que não pesam mais do que 7% do Produto Interno Bruto (PIB) americano. Essas tecnologias não revolucionam mais a vida cotidiana dos indivíduos nas mesmas proporções que as inovações do passado. Nos escritórios, o grosso da revolução digital aconteceu nos anos 1990, pela combinação dos computadores com a internet. Depois disso, as condições de trabalho não mudaram de forma significativa: PC, telefone, conexão. As grandes rupturas já ocorreram. É por isso que a produtividade global dos fatores segue lentamente” (14).
PARA CONCLUIR, ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O MEIO AMBIENTE E AS RELAÇÕES POLÍTICAS INTERNACIONAIS E NACIONAIS
O Fundo Monetário Internacional (FMI) anunciou no fim de janeiro (2019) a baixa nas suas previsões de crescimento que, porém, já eram fracas. Essa revisão é devido à situação da Europa e da América Latina, mas em parte também devido a China. As cifras oficiais do crescimento chinês, que já são inferiores a metade das que existiam há dez anos atrás, se fossem examinadas em detalhes não alcançam sequer os 5% anunciados. A economia mundial está marcada indelevelmente por um crescimento muito lento, resultante de vários processos cumulativos.
Em primeiro lugar estão as políticas de austeridade, espalhadas por toda a parte, assim como uma situação tal que as empresas e os grandes distribuidores comerciais precisam constantemente persuadir as famílias, cujo poder de compra encontra-se paralisado para qualquer coisa além dos gastos cotidianos mais indispensáveis, a comprarem bens que elas já possuem e dos quais elas, na maioria das vezes, não necessitam. Paralelamente, nas chamadas cadeias mundiais de valor [15], os ordenantes pressionam cada vez mais os subcontratados e os transportadores marítimos e viários ao longo de toda a cadeia. A curva da acumulação do capital portador de juros (gráfico 3) reforça o peso econômico e político, em todos os países, dos gestores de fundos e dos grandes grupos financeiros industriais e comerciais interessados unicamente nos fluxos de pagamentos dos juros e à distribuição máxima de dividendos. Assim, o processo de contração que domina a economia mundial é acompanhado de uma aceleração da dilapidação dos recursos minerais, da devastação das florestas e do esgotamento dos solos [16]. Paralelamente, o montante de investimentos públicos exigidos para a “transição ecológica” é impraticável sem a anulação das dividas publicas, que se trata de uma reivindicação democrática e absolutamente central.
Para ser breve, um pequeno comentário sobre a situação política. A indiferença tanto em relação ao passado, quanto em relação ao futuro, associada à uma vulgaridade extrema faz de Donald Trump o homem político mais representativo das classes dominantes e dirigentes do momento histórico presente. Em Davos, diante de sua ausência, o FMI soou o alerta sobre os riscos políticos que ameaçariam o capitalismo mundial. No plano internacional, nós entramos em uma situação na qual os países e os grandes grupos se enfrentam frente à frente, uma concorrência direta na qual um dos instrumentos no arsenal (para um número muito reduzido de Estados que detém a capacidade política de recorrer a ele) é a guerra comercial que Trump não hesitou em começar a utilizar.
Sobre a situação no interior de cada país, a situação atual em todo o mundo de “jogo de soma zero” impede o “gotejamento” (ruissellement) de políticas sociais prometido por certos governos – entre os quais, o de Macron – ao mesmo tempo em que em nenhuma parte os “plutocratas” estão dispostos a largar mão de sequer uma pequena lasca de suas riquezas. Os governos não mudarão a política econômica (as receitas neoliberais cujos fracassos são retumbantes e evidentes, como é o caso na França [17]), nem atacarão os privilégios dos muito ricos. Então, face ao desmantelamento dos serviços públicos (hospitais, escolas); do sistema de repartição das aposentadorias; dos seguros de saúde e desemprego; a precarização cada vez maior dos empregos e a dispersão e marginalização geográfica de um conjunto cada vez maior da população, os explorados e dominados não podem fazer nada além de se revoltarem. Uma longa fase de integração dos sindicatos ao Estado e/ou à burguesia (em países onde existe a cogestão) obriga-os a fazer isso encontrando suas próprias maneiras e métodos originais. Que serão certamente influenciados pelo passado da luta de classes e pelas tradições políticas de cada país.
Nessa perspectiva, o movimento dos Coletes Amarelos – um “movimento autônomo que é, se ousamos dizer, espontâneo e auto-organizado” [18] – é algo profundamente francês, mas ele prenuncia em todas as partes movimentos similares em sua natureza, ainda que diferentes em suas formas. Por outro lado, é certo também que na Europa Ocidental, o Estado e a burguesia francesa encontram no governo Macron uma forma avançada do modelo de um Estado neoliberal-autoritário – para utilizar o termo de Ugo Palheta (19) – concentrando meios de repressão jurídico-policiais bastante sofisticados e que não fazem outra coisa senão aumentar sua força. Certamente esses recursos estão destinados a serem utilizados contra os trabalhadores e os jovens em seus combates na defesa de seus direitos mais elementares – e pelos quais eles serão obrigados a lutar de qualquer maneira. É justamente esses enfrentamentos duríssimos que a lei anticasseur (lei anti-vandalismo) prenuncia.
Paris, 16 de fevereiro de 2019.
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O pequeno texto que entregamos ao público brasileiro foi escrito por François Chesnais para o A l’encontre em fevereiro de 2019, em um importante momento das mobilizações dos Gilets Jaunes na França. O governo de Macron aprovara então uma lei anti-vandalismo (Loi anti-casseurs) que concentrava ainda mais o já elevadíssimo poder de coerção do Estado francês contra os movimentos de trabalhadores e jovens, mobilizando todo o aparato de inteligência policial, o aparelho jurídico-repressivo e o sistema de combate ao terrorismo contra um movimento social espontâneo e desafiador. É nesse quadro que o texto procura articular a situação francesa à crise mundial e seus desdobramentos, anunciando repercussões importantes para todos os países. Os comentários são breves e ácidos. Por vezes intrigante e lacunoso, possibilita que sejam levantadas inúmeras questões sobre o atual estágio do capitalismo, mas também relevantes e polêmicas perquisições aos debates da esquerda. É justamente por essa contribuição que consideramos que essa peça poderá nos servir muito menos como um pequeno recorte dos debates acerca da situação social da França, que para levantar debates fundamentais sobre as estratégias da esquerda no Brasil e na América Latina.
Nota de Allan Kenji Seki
[1] “O mercado mundial está contido no próprio conceito de capital” – Marx, K. Esboço da crítica à economia política, 1857-1858 (Grundrisse).
[2] Com a condição de que aqui isso não se define como “a antecâmara do socialismo” como quer a vulgata leninista.
[3] Cf.: http://bit.ly/2kEnIpO
[4] Cf.: http://bit.ly/2kfqH8b
[5] Primeiro parágrafo do capítulo XXXI.
[6] Por oposição aos “ciclos longos” que supõe uma certa regularidade e, sobretudo, a presença de um mecanismo “endógeno” de retomada como na caracterização que Marx realizou no volume II d’O Capital em relação aos ciclos “decenais” que se repetem de forma regular pela reposição da maquinaria. O Capital foi escrito em plena revolução industrial. As mudanças tecnológicas são um motor de acumulação. A teoria se apresenta em particular nos capítulos sobre o mais-valor relativo cujo fio condutor é a elevação da produtividade do trabalho. A noção de ciclos longos foi forjada por Trotski nos anos 1920, à sua vez, situado nos debates do período da III internacional e, no quadro acadêmico russo, com Kondratieff. A teoria dos ciclos longos foi, em seguida, defendida por Schumpeter e sua escola. Ernest Mandel esteve durante algum tempo sob sua influência. No capítulo IV de seu livro Le troisième âge du capitalisme oferece uma definição cíclica das ondas longas e introduz uma dissimetria causal plural entre a fase depressiva e a fase expansiva.
[7] Conferir a entrada completa na Wikipédia: http://bit.ly/2lLcZds
[8] Cf.: http://bit.ly/2kwgxAf
[9] Citado por Michel Husson em seu artigo de março de 2018, disponível em: http://bit.ly/2kfnpli
[10] O artigo na Wikipédia é bastante completo, conferir em: http://bit.ly/2lHixpn
[11] Ernest Mandel, Introdução ao Livro III na edição inglesa d’O Capital In: MARX, K. Capital, Livre III. Penguin, 1981, p. 78. Chamei a atenção para a importância desse texto citando-o em um artigo nos números 631/632 de Inprecor, intitulado “Le capitalisme a-t-il rencontré des limites absolues ?”.
[12] Tyler Cowen, The Great Stagnation: How America Ate All the Low-Hanging Fruit of Modern History,Got Sick and Will (Eventually) Feel Better, Penguin Group 2011
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