Debate
A quem o estado pode oferecer soluções?
Jussara Freire* – Redação UàE – 21/05/2020
“Ainda bem que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus, porque esse monstro está permitindo que os cegos enxerguem que apenas o estado pode dar solução a determinadas crises”
No exato dia em que o Brasil contabilizou mais de mil mortes em 24 horas por Covid-19, o ex-presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva, fez esta infeliz declaração acerca da existência do coronavírus. Após a repercussão da fala realizada em entrevista para a Carta Capital, os veículos de imprensa petista justificaram-na afirmando que Lula não estaria celebrando as mortes, mas que o sentido do enunciado seria o de que foi preciso uma tragédia para que se percebesse a necessidade do Estado em nossas vidas.
Seja qual for o esforço relativista que pouco faz a afirmação ficar menos pior, a gravidade dela não reside somente na forma extremamente insensível com que o ex-presidente acabou por tratar os milhares de atingidos em nosso país e no mundo por essa terrível epidemia. Penso que a situação se agrava pelo que ela explicita sobre o que significa a atuação do PT nesse momento.
O PT é um partido que se diz oposição, que possui uma das maiores abrangências em termos de militância de base e cadeiras parlamentares supostamente à esquerda, mas ao mesmo tempo, onde que este está pautando e atuando por uma política verdadeiramente séria e comprometida com resguardar a vida da população brasileira neste momento?
Embora haja um programa para a crise divulgado em seu site, qual a atuação que efetivamente tem colocado a cabo um projeto em defesa da vida dos brasileiros? Não há nada sério sendo tocado de forma que ressoe na atuação de sua militância e base parlamentar para o enfrentamento da crise, no máximo se critica a postura de Bolsonaro e se costura alianças com o que já houve de pior nesse país, como Fernando Henrique Cardoso, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre.
Em termos de enfrentamento ao Bolsonarismo, somente agora que já há mais de 30 pedidos de impeachment em andamento, o partido assina um pedido coletivo junto ao PSOL, PCB, PSTU, PCO e outros partidos e movimentos sociais, mas de que forma pretende efetivamente tocar essa pauta? Pois até semana passada, há notícias de que os parlamentares do partido estavam se mobilizando discretamente para impedir uma CPI acerca da intervenção do presidente miliciano na Polícia Federal.
Assim, o que a declaração acabou por explicitar, é que aconteça o que acontecer nesse país, a priori, a política do PT têm sido a de não fazer uma oposição efetiva às políticas do governo Bolsonaro, e até mesmo, por vezes, se mobilizar para que investigações que de fato possam atingi-lo não ganhem corpo, nem mesmo diante da corda bamba de um desdobramento de golpe no país.
A prioridade da atuação petista, é aguardar o desgaste do atual Presidente na esperança de isso lhe permitir se apresentar como um contraponto viável eleitoralmente em 2022.
Quem poderá nos salvar?
Além do mais, a declaração nos faz querer acreditar que a saída para os graves problemas que enfrentamos se encontra justamente naquilo que atua como forte causa da ampla maioria deles: o Estado.
Pode até parecer que frente a precarização das políticas públicas, o Estado de fato seria o sujeito capaz de resguardar nossas condições de enfrentar a pandemia, ou até mesmo de evitar que a Covid-19 tomasse tal alcance.
Embora as políticas públicas sejam administradas pelo Estado, não nos foram dadas de mãos beijadas por ele. A política de seguridade social foi uma invenção da auto-organização de nossa classe, apropriada pelo Estado brasileiro e somente tratada como direito e ampliada em função das lutas em que foi possível nossa classe se colocar de forma efetiva contra a administração burguesa do Estado.
Se temos assistido a precarização dessas políticas que são patrimônios da classe trabalhadora e não do estado, não é pela falta deste último, mas justamente porque a atuação para o desmonte das políticas que se colocam em termos de bem-estar social é a expressão da verdadeira forma política do que é um estado e qual o seu papel. Não à toa o papel que o desmonte comporta é operar para que o fundo público seja transferido para o privado e cada vez mais esferas da vida sejam mercantilizadas.
Aqueles que defendem uma política de Estado mínimo tem atuado junto daqueles que dizem defender um Estado de bem estar-social na precarização dos sistemas de saúde no mundo inteiro. E isso porque no fim das contas não importa o lema que adotem, estes sujeitos que parecem apresentar uma dicotomia atuam para que o estado siga priorizando as atividades que nasceu para cumprir: resguardar as condições de reprodução e dominação do capital na sociedade de classes.
Mas ainda que se faça mais um esforço de seguir relativizando a fala de Lula e se ache que ao falar de Estado, ele estava fazendo referência aos sistemas abrangidos pelas políticas públicas, e não ao estado em sua função primordial de balcão de negócios da burguesia, não é como se o governo petista tivesse sido um verdadeiro bastião do resguardo desses sistemas.
Em diversos estados brasileiros foi sob a gestão petista que se expandiram significativamente a parceria com organizações sociais, principalmente na área da saúde. As Organizações Sociais ganharam amplo espaço para gerir unidades de saúde e de pronto atendimento através de programas de aceleração do crescimento, assim como parcerias público-privadas para investimentos na atenção à saúde e Fundação Estatal de Direito Privado.
Além disso, o programa federal mais saúde começou a tratar o setor de saúde como um setor de produção de riqueza. A EBSERH como gestora dos hospitais universitários foi uma implementação petista. Todas essas políticas que foram propagandeadas como programas de expansão dos sistemas de saúde, na verdade contribuíram para a valorização mercantil destes, para que estes começassem a operar em lógicas que vão transferindo paulatinamente recursos e estruturas públicas para o setor privado.
Os índices de perda de leitos públicos de saúde, em comparação com os crescimento dos privados nas últimas décadas ajudam a desvelar o que essas políticas de fato significam, para além de outros elementos que evidenciam a precarização das condições de atendimento e trabalho na saúde hoje.
Por fim, não foi no governo petista que vimos a construção de mega estádios serem priorizadas em detrimento de políticas públicas e até mesmo de expulsões de diversas famílias de suas moradias, com direito a ocupação do exército em favelas e etc?
No mais, o fato de que essas políticas de precarização e terceirização dos serviços públicos também foram implementadas pelo governo PT, já existiam antes destes e continuam se expandido após o mesmo, só deixam explícito o que realmente significa uma política de estado: ela atravessa governos atacando aquilo que de mais caro a classe trabalhadora de cada tempo possui. E prova disso, é que não apenas no Brasil assistimos a um desmonte dos sistemas de saúde, no mundo todo há uma perda histórica de leitos e UTI decorrentes de terceirização e privatização de serviços de saúde.
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Ainda assim, é claro que poderiam haver coisas a serem feitas no âmbito do Estado capitalista nesse momento, de forma mais imediata, para proteger a vida de nossa classe: nacionalização dos setores estratégicos da economia e de todo o setor da saúde, taxar as grandes fortunas, suspender o pagamento e realizar auditoria da dívida pública, revogar a emenda constitucional 95, proibir a terceirização de atividades, indenizar os trabalhadores essenciais, entre outras medidas.
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Uma ou outra dessas propostas, inclusive, até estão elencadas pelo partido dos trabalhadores como parte de um programa para enfrentar a crise. Entretanto, o que segue ganhando destaque nas falas públicas do ex-presidente é a defesa da falida política monetária, expressa na proposta de impressão de dinheiro como saída para a crise econômica.
Não tenho dúvidas de que Lula de fato acredita que apenas o Estado pode dar solução a determinadas crises. A questão que fica nas entrelinhas, é para quem um Estado serve, para quem efetivamente ele pode oferecer soluções em uma sociedade de classes, ainda mais em momentos de crises.
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