Universidade para poucos, balbúrdia para todos
Alguns episódios recentes envolvendo o ministro da educação, Milton Ribeiro, levam a crer que chegou a sua vez nessa espécie de rodízio bizarro instituído pelo governo, em que, a cada período, um ou dois ministros ficam encarregados de atrair as atenções da mídia e redes sociais, com declarações grotescas, afirmações polêmicas, aparições para poucos minutos de fama, com direito a exaltações por parte de suas milícias militantes e inflamando ainda mais a tal ‘polarização’ política do país.
Coerente com o modus operandi do governo a que serve, Ribeiro escolheu temas pouco originais para polemizar: afirmou que a universidade deveria ser “para poucos”, bateu na tecla do “último a fechar, primeiro a abrir”, com ares de anúncio, em rede nacional, de uma pretensa volta à normalidade disfarçada de retorno às aulas presenciais; por fim, gastou uma parcela de seu repertório de preconceitos e ignorância, dizendo que as pessoas com deficiências “atrapalham” o andamento do ensino nas escolas.
Sobre a questão da universidade, essa afirmação por parte de um ministro de Estado sequer surpreende. Seria mais fácil, ao contrário, procurar na História brasileira quantos ministros manifestaram posições favoráveis a essa instituição. Nesse sentido, é preciso lembrar que a luta contra o formato universitário na educação superior é histórica e reúne entre seus defensores um rol amplo de forças sociais e políticas. Para ficar nos últimos 90 anos, desde o emblemático Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, publicado em 1932, temos uma das formulações paradigmáticas dessa ideia, que atribui às universidades o papel de formar as “elites dirigentes” do país. Os primeiros abalos no padrão aristocrático de organização da educação superior brasileira vicejaram, sobretudo, no seio das camadas médias que ao seu modo demandavam acesso e políticas de permanência no nível superior. Em meados do século XX, em São Paulo, tivemos um momento importante dessa movimentação social, com a reivindicação de gratuidade no ensino superior estatal, conquista obtida formalmente com a Constituição Paulista de 1947. Outro momento crucial dessa mobilização ocorreu na primeira metade dos anos 1960, com as lutas pela reforma universitária, se estendendo até o final da década, quando a Ditadura ceifou suas principais lideranças, organizações e espaços de luta.
No vácuo criado pela Ditadura, potencializado pelo AI-5 e outras medidas repressivas, a configuração do ensino superior também encontrou impulso para uma modificação estrutural. E esta foi, antes de mais nada, uma mudança antiuniversitária: uma contrarreforma que visava, de um lado, arrefecer o potencial contestador das lutas pró-universidade, expressa sobretudo pelo movimento estudantil da época, e, de outro lado, capturar para o interesse privado o potencial reprimido de expansão do atendimento no nível superior, com formatos mais rápidos, baratos e comercializáveis. Nesse processo, um ingrediente foi indispensável: os generosos subsídios estatais que a Ditadura estava disposta a conceder. Desde então, a relação entre fundo público e a iniciativa privada (mercantil) no ensino superior tornou-se perene e mais extensa que a das antigas e tradicionais instituições.
Atente-se para algo que não é mero detalhe: os documentos produzidos pela Ditadura, com o objetivo de orientar a sua reforma educacional, detonavam as universidades e contribuíam para forjar a ideia desse formato institucional como problema[1]. Mas os poderosos de então não abriram mão de usar a estratégia de manter o formato da universidade como “preferencial” para a organização do ensino superior na Lei 5.540/1968[2], base da chamada “reforma universitária”.
O que ocorreu posteriormente à essa lei, porém, não foi uma expansão nesses moldes. Da década de 1970 aos anos 1990, o ensino superior brasileiro viu as universidades e o setor público perderem suas posições dominantes na oferta desse ensino. Com as reformas feitas na segunda metade dos anos 1990 e na década dos 2000, as instituições universitárias até usufruíram de certo protagonismo, mas em sentido bem distinto: por um lado, os controles estatais sobre esse formato institucional foram se afrouxando, o que abriu o caminho para a ação privada, até então muito limitada às instituições mais tradicionais (privadas sem fins lucrativos). Por outro lado, a própria referência ao nome “universidade” se tornou alvo de disputas, dada a emergência dos Centros Universitários (quase todos privados), que se empenharam na briga pelo uso do prefixo “uni” em suas marcas, o que conferia prestígio a um formato institucional moldado exatamente para estender às instituições privadas garantias e prerrogativas que somente as universidades detinham (abrir e fechar cursos, por exemplo), sem exigir delas as mesmas contrapartidas em termos de funcionamento (atividades de pesquisa e outras).
Pródigo em campanhas publicitárias, o governo Lula também introduziu uma nova variável nessa equação, com um de seus programas mais emblemáticos na educação superior. Chamado de “Programa Universidade para Todos”, na realidade, ofertava vagas em sua grande maioria em instituições não universitárias, sabidamente de qualidade inferior àquela que se podia encontrar nas universidades públicas. Com um funcionamento relativamente simples e aproveitando-se de um período de crescimento econômico e da arrecadação estatal, sem dúvidas, o Prouni contribuiu para ampliar o atendimento nesse nível de ensino, principalmente entre os segmentos mais pobres da população brasileira. Visto nessa perspectiva, o programa viabilizou o encontro entre duas tendências: a da expansão privatista do ensino superior, cuja capacidade de barganha com os poderes públicos era crescente, e a enorme demanda reprimida por acesso ao nível superior no Brasil.
Outro aspecto sobre essa expansão privada e não universitária que merece ser destacado é o da contenção da expansão nas universidades estatais, assim como de crise do setor privado tradicional, formado por instituições sem fins lucrativos. Duas estratégias aparentemente contraditórias ajudaram a cimentar ideologicamente esse processo: por um lado, a desqualificação sistemática, com amplo apoio midiático, do formato universitário como “elitista”, supostamente caro, ineficiente e descolado das necessidades do mercado de trabalho; por outro lado, a indistinção entre as instituições, o que fez com que, mesmo entre os setores mais críticos, se passasse a tratar de todo o ensino superior como “universitário”.[3]
A expansão flexível das universidades federais com o programa Reuni (2007-2012) é outra expressão desse processo: sem abrir mão do formato universitário, levou para o seu interior critérios e diretrizes que desfiguravam o seu padrão de financiamento, de infraestrutura, corpo docente e de servidores técnico-administrativos, além de vincular a expansão a exigências tipicamente gerencialistas. Noutras palavras, o Reuni ampliou o elemento não universitário dentro das universidades federais, potencializando desigualdades que não permitem que em todas as áreas e unidades acadêmicas se possa realizar uma universidade de mesmo padrão.
Quando o ministro fala, portanto, em “universidade para poucos”, não está apenas difundindo bobagens sobre a educação superior. Está mostrando sua adesão a um posicionamento historicamente hegemônico no Brasil, principalmente entre as suas classes dominantes: quando a ideia de “democratização” do ensino superior é tolerada, o é tão-somente sob a condição de que não se democratize aquilo que há de melhor nesse ensino – as universidades mais bem estruturadas que, a rigor, já são para poucos. Ribeiro não faz mais que repetir, assim, as agendas e diretrizes de organismos como o Banco Mundial, de fomento a uma educação dita pós-secundária ou terciária como formato mais desejável em países periféricos.
Nesse cenário é possível ter uma visão mais completa do sentido que o ex ministro Weintraub quis imputar às universidades quando as chamou de lugar de “balbúrdia”: o projeto representado pelo governo não é o de acabar com a universidade, mas sim com uma configuração específica dela, aquela que foi possível construir nas lutas contra a Ditadura e que, com muita dificuldade, ainda mantêm vivos princípios como autonomia, gratuidade, indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, gestão democrática, etc. Uma configuração essencial, ainda que não suficiente, para que a universidade tenha um papel estratégico no desenvolvimento nacional, formando pessoas e produzindo conhecimentos de forma autônoma. Portanto, o “para poucos” do ministro Ribeiro e projetos como o Future-se não representam apenas uma repetição histórica: manter a universidade para poucos também implica modificá-la, já que sua reprodução não ocorre de modo automático e sem conflitos.
A chamada “guerra cultural”, os ataques sistemáticos ao pensamento crítico (intensificados nos últimos anos) e, recentemente, as ingerências feitas pelo governo nas instituições federais, solapando a já limitada autonomia na escolha de seus dirigentes, são formas de materialização desse projeto que visa modificar a universidade para mantê-la em suas linhas hegemônicas num contexto em que é crescente o acionamento de instrumentos coercitivos para a manutenção da ordem. O “para poucos” do ministro, no fundo, é uma apologia à desigualdade que caracteriza, há tempos, a educação superior brasileira, e a expressão do desejo de vê-la ampliada.
Não se está falando de uma oposição simples entre as melhores universidades e as demais instituições de baixa qualidade, mas de algo que opera também dentro de cada instituição, como divisões, hierarquias entre áreas e tipos de ensino, entre formas de financiamento e organização do trabalho. O estrago já feito nesse sentido é grande e uma das suas formas de expressão está no fato de que a própria descaracterização do formato universitário não é mais tida como um problema para a maior parte das forças políticas no país.
O pior que se pode fazer em um cenário como esse é resignar-se a uma estratégia reiterativa, isto é, no afã de se contrapor ao “para poucos” do atual governo, acabar por também fazer apologia à universidade que temos; ou, quando muito, brigar para restabelecer aquilo que teria sido perdido nos últimos anos, sem enfrentamentos mais amplos. Se há uma lição que se pode tirar de toda a balbúrdia que o atual governo tem feito com a educação é que as universidades só poderão ter outro papel, socialmente relevante e radicalmente distinto do que têm hoje, se lutarmos pela sua transformação. E transformações desse tipo pressupõem tempo, projeto e mobilização de base, permanente e ampla, tendo a avaliação crítica de como chegamos até a configuração atual da educação superior um ponto de partida essencial. Tudo isso, claramente, não parece estar nos planos daquelas forças cujo horizonte político não ultrapassa o âmbito das eleições de outubro de 2022.
[1] Sobre esse assunto, recomendo a leitura do trabalho de Sofia Lerche Vieira, O discurso da reforma universitária, publicado em 1982.
[2] O Art. 2º da Lei n. 5.540/1968 estabelecia que “O ensino superior, indissociável da pesquisa, será ministrado em universidades e, excepcionalmente, em estabelecimentos isolados, organizados como instituições de direito público ou privado”. Essa formulação astuta levou alguns estudiosos do período a concluir que a Ditadura teria tido uma postura de “valorização” da universidade, visão esta que não encontra respaldo no desenvolvimento posterior desse nível de ensino. A própria denominação “reforma universitária” é imprecisa pois se refere a uma reforma, antes de mais nada, antiuniversitária.
[3] Conforme os dados do Censo da Educação Superior 2019, 92% das instituições não são universitárias.
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