Todo o poder emana do ‘polvo’: as tentaculares manifestações dos interesses do capital na educação superior brasileira em duas notícias
Em coautoria com Olinda Evangelista.
É escusado dizer que fazem muito mal as notícias vindas do governo federal, seja lá qual for o tema. Tudo que ouvimos e lemos causa calafrios; uma comoção profunda nos atingiu quando explodiram as informações sobre o desaparecimento do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, pois sabíamos que era sinal de mau agouro (TEIXEIRA, 2022).
De outra forma, as notícias emergem como propostas crueis requentadas, sofridas pelos brasileiros em outros momentos históricos. Este é o caso de duas notícias sobre as universidades públicas que correram o país nas últimas semanas. A primeira foi a entrada na pauta da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), da Câmara dos Deputados, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 206/2019 (BRASIL, 2019) para alterar o artigo nº 206 da Constituição Federal de 1988. O inciso IV deste artigo reza que compõe os princípios constitucionais a “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais” e é isto que a PEC 206 (BRASIL, 2019) quer alterar, acrescentando-lhe um terceiro parágrafo “para dispor sobre a cobrança de mensalidade pelas universidades públicas”. A segunda notícia que sacudiu os que defendem as universidades públicas foi o anúncio do corte de R$ 3,2 bilhões no orçamento do Ministério da Educação (MEC) e de R$ 2,9 bilhões no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) – o 10º anúncio de cortes no orçamento federal destinado à educação superior.
Ambas geraram protestos pelo país; 9 de junho foi definido como dia de mobilização preparatória para o movimento Ocupa Brasília, marcado para o dia 14 de junho, quando docentes, TAs, estudantes e outros servidores fizeram ato público “contra os cortes na Educação, pela revogação da EC 95, contra a PEC 32 e pela recomposição salarial de 19,99%” (ANDES-SN, 2022).
Os argumentos ideológicos para a cobrança de taxas e matrículas
Propostas como esta – de cobrança de taxas, matrículas e mensalidades nas IES públicas – volta-e-meia aparecem nos debates políticos e têm sido corriqueiras no Congresso Nacional; o objetivo é o de estabelecer as bases jurídicas para possibilitar a cobrança de mensalidades nas instituições de educação superior (federais, estaduais, municipais), desde as universidades aos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. A PEC 206/2019 (BRASIL, 2019), contudo, inova ao propor a obrigatoriedade de que todas as instituições realizem algum tipo de cobrança de mensalidade. É preciso atenção, pois trata-se de uma reforma educacional inteira com evidentes veios privatistas que, ademais, rondam constantemente as IES públicas.
Exemplo disto, foi o julgamento do Recurso Extraordinário 597.854, de 26 de abril de 2017, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sedimentando o entendimento que admitiu a cobrança de taxas e mensalidades nos cursos de graduação latu senso nas IES públicas. Esta foi uma derrota importante e que não pode ser menosprezada, pois abriu espaço para a incorporação de outras atividades neste âmbito, principalmente as de extensão e pesquisa e deu ainda maior fôlego aos anseios privatistas quanto às mudanças no texto constitucional que diz respeito ao cerne das IES públicas: os cursos de graduação.
A frequente renovação desta demanda pelos acólitos das privatizações deriva de duas concepções ideológicas, disseminadas após os anos de 1960, sobre a universidade brasileira: 1) a de que a maioria dos estudantes matriculados nas universidades públicas seria proveniente de escolas privadas e 2) que grande parte destes são oriundos de famílias de alta renda, que poderiam pagar mensalidades para, inclusive, colaborar no esforço de financiamento das políticas de inclusão.
A Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES, 2018) publicou pesquisa na qual a materialidade histórica, concretizada emdados objetivos, lança por terra tais concepções ideológicas. Em 1996, 54,96% dos estudantes matriculados nas Instituições Federais de Educação Superior (IFES) eram provenientes de escolas privadas, enquanto 45,04% eram oriundos de escolas públicas, podendo ser “quase” verdade que os primeiros eram a maioria, mas uma pequena maioria, de resto, superada nos anos seguintes. Em 2014, os dados demonstravam uma realidade substantivamente reconfigurada; apenas 35,98% de estudantes eram oriundos de escolas particulares (e, portanto, 64,02% de escolas públicas). E, em 2018, a situação persistia com 35,3% do alunado proveniente de privadas e 64,7% de públicas. Os dados indicam, flagrantemente, que o primeiro argumento não passa de uma mentira contada muitas vezes na imprensa, nos Aparelhos Privados de Hegemonia (APH) e nos discursos de agentes políticos. Mentiras que precisam ser vistas no interior do projeto de achincalhamento da universidade pública perpetrado, hoje, no Governo Jair Bolsonaro (2018-2022) pelo próprio Presidente e seus Ministros da Educação. Não foi diferente nos governos paulistas de Geraldo Alckmin (2001-2006; 2011-2018)[1], João Dória (2019-2022)[2] e Rodrigo Garcia (2022-2022)[3], assim como no baiano de Rui Costa (2015-2022)[4].
Colaboram na tarefa, no quadro geral de reprodução de concepções falseadoras como esta, os Aparelhos Privados de Hegemonia (APHs) organicamente ligados aos grandes proprietários de capitais do ensino superior privado, os maiores beneficiários da cobrança de mensalidades nas IES públicas brasileiras[5]. A gratuidade da universidade vem sendo atacada com ferocidade por certos APHs, dado que representa uma barreira mercadológica para a expansão financeirizada realizada pelos capitais de ensino superior nos últimos 26 anos. Nas críticas da Associação Brasileira de Mentenedoras do Ensino Superior (ABMES, 2005),
Uma universidade pública que recebe orçamentos do erário e não cobra dos alunos tem a possibilidade de oferecer cursos em praticamente todas as direções. Um dos seus papéis relevantes é fazer com que o ensino público ocupe espaços onde o setor privado não opera espontaneamente (SCHWARTZMAN; CASTRO, 2005, p. 13).
Os espaços que “sobrariam” para a esfera pública coincidem precisamente com aqueles nos quais são necessários grandes investimentos infraestruturais e técnicos, “sobrando” para o setor privado o front mais rentável, razão pela qual a formação docente desponta como o maior campo de investimentos privados, potencializados os lucros pela prevalência da modalidade de ensino a distância (EVANGELISTA et al, 2019).
Não podem existir dúvidas entre aqueles que defendem a educação pública de que são esses os interesses em jogo quando se trata da gratuidade: em primeiro lugar, os capitais de ensino consideram haver uma concorrência desleal do Estado em relação aos seus negócios, o que coloca a ausência de cobrança de mensalidades pelas IES públicas num lugar privilegiado de disputas. Em segundo lugar, o projeto dos empresários de ensino superior é tornar a universidade pública, no limite, uma função acessória em relação aos cursos e regiões que tais capitais não queiram ou não possam, temporariamente, explorar. Cabe lembrar que o setor privado abocanha 75% das matrículas no ensino superior; apenas 25% dos estudantes têm acesso às IES públicas. E mesmo aí os capitais de ensino não querem deixar de interferir.
A questão da cobrança de mensalidades aflora nos debates dos APHs como a ponta de lança do atual enfrentamento contra a educação pública superior, invocando diversos modelos como o apresentado na PEC 206/2019. Em 2018, por exemplo, o Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (SEMESP), uma das cinco principais entidades representativas dos interesses dos oligopólios de ensino, enviou uma missão para a Austrália a fim de estabelecer as bases de uma campanha para a criação de um modelo de cobrança como o adotado naquele país: o ensino superior é pago e as cobranças ocorrem após a formatura, atreladas a um modelo de tributação de renda do trabalho. No Brasil, o SEMESP defende que o Imposto de Renda (IR) sirva como veículo de cobrança das mensalidades, num sistema similar à extensão do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) nas IES públicas.
No Programa Future-se, em 2019, o governo Bolsonaro havia aventado a possibilidade de instaurar cobranças de taxas acadêmicas, retirando tal proposta inconstitucional do projeto poucas horas antes de sua divulgação, dada a possibilidade de este objetivo atravancar a adesão ao programa. Ele foi vencido pela força dos movimentos sindicais e estudantis, ainda que persista como ideia-força em diversas propostas em andamento. À época, o Ministro da Educação, Abraham Weintraub, defendia, entre outras medidas, um modelo de financiamento para as universidades federais que dispusesse o patrimônio das instituições sob forma financeirizada, além da mercantilização das pesquisas e ensino diretamente articuladas às demandas de empresas. Além disso, propunha reformas constitucionais que permitissem a implementação do modelo de cobrança de mensalidades enrustido na mais-tributação dos trabalhadores. Semelhantemente, é o mesmo que defende a deputada Tabata Amaral (PSB): “(…) temos um problema real de financiamento das nossas universidades, que não conseguiremos sanar apenas com mais recursos públicos. Como já defendi em várias oportunidades, acredito que podemos aprender muito com o modelo Australiano” (AMARAL, 2022). O que está em jogo, portanto, é a redução máxima das diferenças entre as IES públicas e privadas: pela deterioração das condições de ensino, pesquisa e extensão das públicas, a eadeização do ensino[6], a cobrança de mensalidades e assim por diante.
No que tange à segunda concepção – de que a maioria dos estudantes das IES públicas é de família rica, que poderia pagar pelas mensalidades sem que isso comprometesse a renda familiar –, ela também não se sustenta. O raciocínio desenvolvido na PEC 206/2019 é anacrônico e cínico. Nela se afirma que, no Brasil,
A gratuidade generalizada, que não considera a renda, gera distorções gravíssimas, fazendo com que os estudantes ricos – que obviamente tiveram uma formação mais sólida na educação básica – ocupem as vagas disponíveis no vestibular em detrimento da população mais carente, justamente a que mais precisa da formação superior, para mudar sua história de vida. […] O gasto público nessas universidades é desigual e favorece os mais ricos. (BRASIL, 2019).
Entre as distorções que o excerto evidencia, sobreleva o desprezo pelo trabalho docente realizado na Educação Básica pública; de acordo com os dados do Censo Escolar de 2019, ela forma 87,5% dos alunos matriculados no Ensino Médio, ou seja, mais de 6,5 milhões de jovens – num universo de 7,46 milhões, apenas nessa etapa, a despeito da violência perpetrada contra os professores e o estado de permanente constrição orçamentária. O aparente compromisso social, de mais a mais, falsifica a caracterização do alunado aproveitando-se de um senso comum imensamente vulgar. Os dados da ANDIFES, mais uma vez, demonstram que, em 2018, 70,15% de todos os estudantes matriculados nas IFES eram oriundos de famílias que ganhavam até 1,5 salários mínimos (ANDIFES, 2018). A mesma pesquisa constatou que a renda nominal média per capita dos estudantes das IFES era de R$ 1.328,00 – abaixo da renda média nominal per capita brasileira, de R$ 1.373,00 à época e muito inferior à renda per capita necessária para a dedicação integral aos estudos em nível de graduação.
As inverdades difundidas por interesses escusos se perpetuam lastreadas em caracterizações realizadas décadas antes, resultado do tipo específico de expansão seletiva das instituições públicas durante o regime empresarial-militar de 1964 que, a partir do golpe, procurou deslegitimar sistematicamente a autoridade moral das universidades, atacando os corpos docentes, estudantis e técnico-administrativos. A realidade da universidade pública brasileira, em que pese os inumeráveis entraves criados pelos governos, mudou muito e sempre em razão da pressão exercida pelos movimentos estudantis, docentes e de TAs. Em 2018, apenas 3,1% dos estudantes das IFES eram de famílias que tinham renda mensal superior a 20 salários mínimos.
Note-se a ironia quando Kim Kataguiri (Movimento Brasil Livre – MBL), relator da PEC 206/2019 na CCJ da Câmara, afirmou que a gratuidade das instituições de ensino é a responsável pelo aumento da desigualdade social e a perpetuação da miséria, “na medida em que os mais pobres pagam pela educação dos mais ricos” (INTRIERI, 2022). O ocultamento dos dados objetivos é um dos mecanismos movidos de forma articulada entre Estado e demandas privadas; a PEC 206/2019 é apenas mais uma peça na engrenagem. Trata-se da tentativa de atribuir certo verniz social para o encerramento da gratuidade: querem, uma vez mais, fazer parecer que os interesses dos grandes capitais de ensino estariam em identidade com os interesses dos trabalhadores. Nada mais falso.
O Banco Mundial está na cena
Organismos Multilaterais (OMs), como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial (BM) foram mencionados na justificativa da EC 206/2019 (BRASIL, 2019). O segundo avaliou, no período do Governo Temer (2016-2018), em seu documento Um ajuste justo: propostas para aumentar eficiência e equidade do gasto público no Brasil (BANCO MUNDIAL, 2017), que o gasto com o ensino superior público no Brasil era muito regressivo, indicando “a necessidade de introduzir o pagamento de mensalidades em universidades públicas para as famílias mais ricas”. Diagnosticava que,
Uma vez que diplomas universitários geram altos retornos pessoais (em termos de salários mais altos), a maioria dos países cobra pelo ensino fornecido em universidades públicas e oferece empréstimos públicos que podem ser pagos com os salários futuros dos estudantes. O Brasil já fornece esse tipo de financiamento para que estudantes possam frequentar universidades particulares no âmbito do Programa FIES. Não existe um motivo claro que impeça a adoção do mesmo modelo para as universidades públicas. A extensão do FIES às universidades federais poderia ser combinada ao fornecimento de bolsas de estudo gratuitas a estudantes dos 40% mais pobres da população.
A fórmula bancomundialista que tanta adesão encontrou em nossas terras é simples: ricos pagam, pobres viram bolsistas. A aposta no Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) como o principal programa desenhado pelo Banco não é casual. O FIES foi, desde sua implantação em 1999, um dos pilares da financeirização do ensino superior no Brasil, junto com o Programa Universidade Para Todos (PROUNI) e o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies). O exame dos dados orçamentários do FIES (Figura 1) e dos gastos tributários estimados do Prouni (Figura 2) permite verificar a importância do volume de recursos que estes programas transferiram para os fundos de acumulação de capitais e, portanto, porque sua extensão às IES públicas, com a quebra da gratuidade, é uma questão estratégica na financeirização da educação superior brasileira.
Figura 1 – Evolução das despesas orçamentárias do FIES no orçamento público federal – Brasil, 2000-2017 (em bilhões de R$)
Fonte: Elaboração do autor (SEKI, 2021) com dados do Relatório do FIES (2000-2017). Nota: Os dados correspondentes ao ano de 2019 foram contabilizados apenas até agosto. Dados em valores de novembro de 2019, corrigidos pelo IPCA.
Figura 2 – Estimativa de gastos tributários com o Prouni – Brasil, 2006-2019 (em bilhões de R$)
Fonte: Elaboração do autor (SEKI, 2021) com dados de estimativas de gastos tributários elaborados pela Receita Federal. Nota: Os dados correspondentes ao ano de 2019 foram contabilizados apenas até agosto. Dados em valores de novembro de 2019, corrigidos pelo IPCA.
As informações coligidas não deixam dúvidas que, mesmo após 2016, com a implementação da Emenda Constitucional n. 95 (BRASIL, 2016), que estabeleceu o ajuste fiscal e o teto de gastos para as principais políticas sociais, as despesas estimadas com o FIES e o Prouni seguiram em crescimento. Conclusão: há um claro comprometimento do Estado com as transferências de fundos públicos aos capitais de ensino superior. Ao compararmos tais transferências com os dados orçamentários das despesas com as IFES, percebemos que a situação é outra.
Figura 3 – Evolução do Orçamento Federal com as IFES – Brasil, 2000-2022
Fonte: Dados extraídos do Sistema de Informações do Orçamento Federal – SIOF.
A partir de 2015, interrompeu-se o ciclo de expansão de vagas e matrículas no Ensino Superior Federal, em razão das restrições no orçamento que começaram a ser implementadas no governo Dilma Rousseff (2011-2016). Essa situação se tornou crítica com a Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016 (BRASIL, 2016), com o congelamento de recursos pelo teto das despesas daquele ano para as próximas duas décadas. O efeito nos dados orçamentários foi imediato, observável na Figura 4, quando comparamos o orçamento destinado a cada dotação.
Figura 4 – Evolução do Orçamento Federal com as IFES por tipo de dotação – Brasil, 2000-2022
Fonte: Dados extraídos do Sistema de Informações do Orçamento Federal – SIOF.
A Figura 4 explicita que os cortes nas IFES foram aplicados nas despesas com pessoal, custeio e, sobretudo, investimentos. Os efeitos destas medidas resultaram no congelamento da expansão das IFES e na acelerada deterioração da infraestrutura instalada, visíveis nos episódios de insalubridade de salas de aulas e laboratórios em várias universidades do país, na paralisia de pesquisas que dependem de alta tecnologia, na evasão de parcelas importantes de força de trabalho científica e, infelizmente, também nas tragédias ocorridas nos últimos anos, como os incêndios no Prédio da Reitoria da UFRJ (2016), nas duas alas da Moradia Estudantil da UFRJ (2017), no Museu Nacional (2018), na biblioteca da UFPE (2018) e no edifício do acervo do museu da UFMG (2020), CFH-UFSC (2022).
A segunda notícia: mais cortes orçamentários e política de “terra arrasada”
O percurso realizado até aqui se torna mais alarmante quando cotejado com a segunda notícia referida: mais cortes no orçamento federal, na ordem de R$ 3,2 bilhões no orçamento do Ministério da Educação (MEC) e de R$ 2,9 bilhões no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). No MEC, esse valor representa um bloqueio linear de 14,5% do orçamento das universidades e institutos federais. Os efeitos serão sentidos imediatamente, visto que os riscos da pandemia da Covid-19 não foram mitigados e as instituições ainda estão realizando as adaptações necessárias para o retorno presencial. As políticas de permanência estudantil e os programas especiais para educação indígena e do campo, por exemplo, estão à mingua, com aumento efetivo de perda líquida de matrículas pela evasão e abandono estudantis. As maiorias estudantis, arrasadas pela pandemia e a crise inflacionária, veem-se premidas entre sobreviver ou estudar.
Para mais, estes cortes foram anunciados no interior de uma série de perdas orçamentárias sofridas pelas IFES desde 2014. O orçamento das instituições está totalmente incompatível com o nível de expansão que vinha sendo realizado e com os custos crescentes com a infraestrutura instalada para as salas de aula, as políticas de permanência estudantil e os laboratórios de pesquisa. Não obstante, como vimos nos dados de transferências de fundos públicos pelo FIES e PROUNI aos capitais de ensino, fica evidente que não se trata somente de falta de orçamento, mas de uma decisão produzida no âmbito do Estado: o sufocamento das IES públicas. Recursos que deveriam ser destinados à manutenção e expansão dessas instituições vêm sendo transferidos para o, assim chamado, ‘orçamento secreto’ em favor das negociatas do governo com sua base política no Congresso Nacional e, principalmente, das benesses para os capitais de ensino. Não é por outra razão que a taxa de matrículas privadas segue se alargando, com cada vez maior abertura em relação às matrículas públicas – estas, como demonstrado na Figura 5, estão relativamente estagnadas desde 2012 (período de dez anos).
Figura 5 – Matrículas públicas e privadas na Educação Superior – Brasil, 1990-2019
Fonte: Elaboração dos autores com dados de SEKI (2021) calculados com base nos microdados do Censo da Educação Superior; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) – 1995-2019.
Atenção: essas matrículas privadas não têm como base universidade e faculdades comunitárias ou outros tipos de instituições sem fins lucrativos, mas edificam os grandes capitais de ensino, tais como a Cogna (com mais 870 mil estudantes matriculados), a Estácio de Sá (436 mil), a Unip (403 mil), a Laureate (246 mil) e a Ser Educacional (137 mil). Verdadeiros oligopólios que, juntos, concentram mais alunos do que todas as instituições públicas brasileiras e alimentam-se, em larga medida, das transferências de fundos públicos que poderiam financiar as atividades e a expansão das IFES em todo o Brasil.
Vale mencionar que, em 2020, durante a discussão do Orçamento Federal de 2021, o governo anunciou, no dia 10 de agosto, um corte de 18,2% linear para as universidades federais, o que representava recursos equivalentes a um bilhão de reais, aproximadamente. Não obstante, no dia 11 de agosto, apenas um dia após o anúncio dos cortes, a Comissão de Educação do Senado Federal colocava em pauta um projeto de auxílio às IES privadas cujo custo era estimado em transferências de R$ 16 bilhões dos fundos constitucionais a título de socorro em razão da pandemia da Covid-19, além de linhas de crédito subsidiado no montante de R$ 40 bilhões (Figura 6).
Figura 6 – Montagem com notícias do Portal G1 (10/08/2020) e Valor Econômico (11/08/2020)
Fonte: textos de imprensa publicados no Portal G1 de autoria de Ricardo Novelino (NOVELINO, 2020), e do Valor Econômico, de Vandson Lima e Renan Truffi (LIMA; TRUFFI, 2020).
O que nos aguarda?
Semelhantes fatos da vida nacional deixam à vista que toda discussão orçamentária envolve necessariamente sua localização em uma disputa não apenas por recursos, mas pela implementação de um projeto de educação superior para o país. Neste projeto estão envolvidas forças econômicas e políticas incrustadas no Congresso Nacional, no Aparelho de Estados, em APHs…
Tal cinismo – demonstrado na sequência de proposição de cortes, seguida pela “ajuda” aos capitais de ensino (Figura 6) – não procura sequer esconder seus propósitos. Nele se articulam as bases de uma hipótese que condensa os cortes, os ataques à gratuidade da educação pública, a expansão do ensino a distância ou eadeiziação (a exemplo do que propõe o Reuni Digital) com os processos de expansão, concentração e centralização de capitais na educação superior. A formação dos oligopólios e as consequência sociais deste projeto burguês na vida social resultam no espraiamento da forma mercantil da educação em todas as direções. Há um veio lógico que conecta cada um desses atos a fios concretos que têm origem na materialidade dos interesses dos capitais na educação brasileira.
A conexão entre todos estes elementos, sua compreensão e articulação nas estratégias de lutas sociais, é necessária e urgente. Sem nomearmos corretamente os inimigos da educação nacional, sem mensurarmos seu poder político e econômico, não teremos como formular as estratégias de luta corretas para enfrentá-los. O que se espera ter demonstrado aqui é que este é um monstro de muitos tentáculos e, ao contrário do que queiram alguns, suas nervuras centrais não estão assentadas na esplanada dos ministérios ou nos palácios de governos, mas nos capitais aos quais essas estruturas se ligam organicamente. Não nos parece possível aguardar resultados eleitorais para fincar o pé naquilo que é essencial: não basta resistir aos cortes, é preciso lutar e ferir de morte a existência dos capitais de ensino. Seremos nós ou eles.
Referências
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ANDIFES. V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) graduandos(as) – 2018. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3MBJYb7. Acesso em: 6 jun. 2022.
BANCO MUNDIAL. Um Ajuste Justo – Análise da Eficiência e Equidade do Gasto Público no Brasil. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3Q2J2z8. Acesso em: 6 jun. 2022.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Disponível em: https://bit.ly/3aWj4NL. Acesso em: 9 jun. 2022.
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição n.º 206, de 2019. Dá nova redação ao art. 206, inciso IV, e acrescenta § 3º ao art. 207, ambos da Constituição Federal, para dispor sobre a cobrança de mensalidade pelas universidades públicas. Disponível em: https://bit.ly/3mPVoxe. Acesso em: 9 jun. 2022.
BRASIL. ReUni Digital: Plano de expansão da EaD nas universidades federais. Brasília: Ministério da Educação e Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, 2022. Disponível em: https://bit.ly/3QiZwUd.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso extraordinário 597.854 Goiás. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3mMMfpd. Acesso em: 9 jun. 2022.
CBN. Secretária de Doria já discute cobrança de mensalidade em universidades públicas de SP. 2018. Disponível em: http://glo.bo/3xuW0NJ. Acesso em 15 jun. 2022.
EVANGELISTA, O.; SEKI, A. K.; SOUZA, A. G.; TITTON, M.; AVILA, A. B. Desventuras dos professores na formação para o capital. Campinas: Mercado das Letras, 2019.
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LIMA, V.; TRUFFI, R. Senadores propõem pacote de ajuda para ensino privado. 2020. Disponível em: http://glo.bo/3xgsICi. Acesso em: 7 jun. 2022.
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SEKI, A. K. O capital financeiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018). Florianópolis: Editoria Em Debate/UFSC, 2021. Disponível em: https://bit.ly/3Kybmpc. Acesso em: 6 jun. 2022.
TEIXEIRA, M.. Mortes de Dom Phillips e Bruno Pereira: últimas notícias de hoje, sexta (17/06). O Povo. Jun. 17, 2022. Disponível em: https://bit.ly/3mYY8bM. Acesso em: 17 jun. 2022.
[1] Geraldo Alckmin foi governador de São Paulo por quatro mandatos, de 2001-2003, 2003-2006 e 2011-2018, enquanto filiado ao Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB). Suas gestões foram marcadas, na educação superior, pelo enfrentamento às universidades públicas estaduais, cortes orçamentários, vilipêndio à imagem das instituições difundidas na imprensa e discursos oficiais e pela proposição de projetos de cobrança de mensalidades nas IES públicas.
[2] Governador de São Paulo pelo PSDB de 2019-2022, nomeou Patrícia Ellen para a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, que estudou propor cobranças de mensalidades para as IES públicas (CBN. 2018).
[3] Atual governador de São Paulo (2022-2022), era vice-governador de João Dória (2019-2022). Em 2011, havia sido convidado pelo então governador Geraldo Alckmin para a Secretaria de Estado e Desenvolvimento Social. É defensor da cobrança de mensalidades nas universidades públicas e de restrições ao orçamento das IES estaduais paulistas (SABBADIN, 2022).
[4] Governador da Bahia pelo Partido dos Trabalhadores (PT), afirmou que a cobrança de mensalidade nas universidades públicas não pode ser um tabu (PITOMBO, 2019).
[5] Em nossa pesquisa (SEKI, 2021), identificamos aproximadamente 50 APHs dedicados exclusivamente a difundir a agenda de interesses burgueses no tema da educação superior.
[6] Tais elementos demonstram a sobrevida do Programa Future-se em sua continuação lógica, o Programa Reuni Digital, proposto pelo governo Jair Bolsonaro, em 2021 (BRASIL, 2022).
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