Renegociação das dívidas do FIES: o que está em jogo?
Está em curso a renegociação de dívidas do FIES que, segundo dados divulgados pela imprensa, atinge a cifra de R$ 123 bilhões. Não dá para dizer que o assunto é novo, pois há mais de uma década vem se falando dessa possibilidade. Curioso é o fato de que a proposição dessa ‘anistia’, formulada com a participação de ninguém menos que Paulo Guedes[1] (e, posteriormente, sancionada por Bolsonaro), também foi defendida pelo atual pré-candidato à presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Provavelmente, não terá sido o único ponto em que haverá convergência de posições entre esses dois grupos políticos neste 2022, haja vista o recente favorecimento concedido pelo atual governo ao Prouni.
Mundo afora, o tema do endividamento estudantil tem sido largamente divulgado e já deu origem até a documentários[2]. O caso mais dramático é o dos Estados Unidos, país onde as dívidas estudantis ocupam o segundo lugar entre as causas de endividamento familiar, perdendo apenas para as hipotecas[3]. Recorrentes também têm sido as notícias sobre casos de estudantes falidos, vidas inteiras comprometidas após fazerem uso de crédito estudantil; além, é claro, de situações bizarras como a de estudantes com insuficiência alimentar, dormindo em automóveis, universidades instalando chuveiros em estacionamentos e outras ‘alternativas’ para que esse público possa dar conta de financiar os estudos e sobreviver fora de suas cidades de origem.[4]
O padrão de financiamento pressuposto em programas como o FIES e Prouni vem sofrendo duras críticas há muito tempo no Brasil. Elas advêm, principalmente, dos setores que defendem a priorização ou a exclusividade dos investimentos públicos no ensino superior estatal, nunca convencidos da ladainha de que comprar vagas privadas ou adotar programas de financiamento seria mais ‘prático’ e ‘barato’. Noutras palavras: que o caráter público de uma política não se avalia apenas pelo “produto” que ela fornece, mas também pela forma desse oferecimento e suas qualidades.[5]
A crítica liberal, por sua vez, se assentava sobre uma base frágil de argumentação sobre a “gestão” do programa, sobretudo a partir das mudanças de 2010, quando se criou o Fundo gestor que, na prática, deixava às custas da União todo o problema do endividamento, ao passo que as instituições turbinavam sua lucratividade. Nela também havia uma ambiguidade, que consistia na tentativa de encontrar um equilíbrio entre essa leitura pretensamente “técnica” e outra, claramente ideológica, que recorria a uma promessa da teoria do capital humano: que o custo dessa expansão seria compensado por uma empregabilidade individual com rendimento maior no futuro e, do ponto de vista coletivo, um ganho relativo à ampliação da qualificação média da força de trabalho, fazendo crescer a produtividade da economia. Diante de promessas tão ‘virtuosas’, pouco se falava da qualidade do que estava sendo adquirido com esses programas de acesso ao ensino superior.
Com o mundo do trabalho reconfigurado, se afastando cada vez mais de qualquer automatismo entre certificação superior e garantia de emprego, além de não garantir nada disso, o que estava por vir foi muito pior: os efeitos que programas como Prouni e FIES tiveram sobre o ensino privado foram significativos, turbinando a sua tendência de mercantilização, concentradora e centralizadora de capitais, assim como de financeirização. É um fato que houve aumento de matrículas, seu processo mais aparente; mas façamos aqui uma lembrança importante: para os segmentos hegemônicos que ocuparam o governo brasileiro por 13 anos, com o Partido dos Trabalhadores, FIES e Prouni eram tratados como o suprassumo da “democratização” do ensino superior, embalados pelo slogan da “primeira pessoa da família a ir para a universidade (sic)”.
Especialmente na fase áurea do FIES (entre os anos de 2010 e 2014), houve uma mudança na forma de organização (e rentabilidade) dos principais grupos privados de ensino, que chegaram a obter receitas próximas a 60% em função do programa[6], não raro gerando dúvidas sobre práticas como a de cobrar mensalidades superiores para “estudantes FIES”, estimulando-os a financiarem os cursos mesmo quando possuíam condições próprias; ou, então, de casos fraudulentos, como a de instituições que ofereciam uma espécie de garantia antecipada de perdão da dívida.[7]
Se tiver qualidade, está no lucro!
Na forma como o assunto é tratado habitualmente, seja pela imprensa seja pelo poder público, não existe relação de nada disso com a qualidade do ensino; no máximo, menções genéricas a uma necessidade de “fiscalização”. Prevalece a lógica liberal de que as “forças do mercado” se encarregarão de estabelecer padrões e inviabilizar os negócios daquelas instituições mais precárias, mas o que as pesquisas da área têm mostrado é que, quando as dificuldades econômicas impedem o funcionamento de IES pequenas ou de perfil menos “mercantil”, quase sempre há um processo de fusão/aquisição delas pelos grandes conglomerados, ampliando o seu poder.
Em matéria recente publicada pela Folha de S. Paulo, um problema adicional é levantado: teria sido o atual perdão de parte das dívidas do FIES uma medida[8] deliberadamente elaborada para que essa anistia fosse estendida ao máximo, incluindo pessoas que não têm, nem nunca tiveram histórico de “incapacidade de pagamento”? Essa é uma hipótese que merece ser investigada, sem dúvida.
Para além do efeito político e eleitoreiro que se sugere, há outros motivos fundamentais. Em anos recentes, o FIES passou a ser o principal – e mais desejado – mecanismo de apropriação de recursos públicos pelo setor privado, principalmente após 2010, quando o número de contratos FIES explodiu. Teria sido uma aposta deliberada na anistia futura? Conservadora, a matéria jornalística da Folha faz esse questionamento dirigindo-a apenas ao estudante tomador do financiamento. Façamos, então, o inverso: na forma como foram arquitetadas as mudanças que permitiram o salto de contratos entre 2010 e 2014, atingindo cifras bilionárias do orçamento estatal, não teriam sido moldadas, justamente, para atender ao interesse das instituições privadas?
Não se pode esquecer que acessar recursos estatais na forma de títulos públicos, além disso, era um grande negócio do ponto de vista financeiro. Na obra antes mencionada (SEKI, 2021), há uma análise fundamental desse mecanismo que financiava as IES privada concedendo-lhes, por assim dizer, uma mercadoria valiosa no mercado financeiro. Conforme as regras do FIES, esses papeis podiam ser usados para abater dívidas tributárias dessas instituições, o que criava, por sua vez, uma ‘alquimia’ com o Prouni, um programa de compra de vagas alicerçado justamente na isenção tributária. Para muitas IES privadas, o benefício foi duplo.
A se confirmar a atual Medida Provisória no Congresso Nacional – o que deve ocorrer, haja vista o seu caráter bastante ‘consensual’ e eleitoreiro-oportunista – confirma-se, também, algo que poucos admitiriam em anos anteriores: o FIES foi sendo moldado, acima de tudo, para ser um programa de garantia da lucratividade do setor privado de ensino superior; uma espécie de adiantamento privilegiado, negociado nos altos escalões do Executivo, não um programa de “democratização” do nível superior. E mais: que estavam corretas aquelas críticas que apontavam que seriam mais bem gastos esses recursos se destinados às instituições estatais, opção que nem o governo atual nem os anteriores fizeram.
Claro que não estamos diante de um problema simples, a ser solucionado da noite para o dia. Numa sociedade tão desigual como a brasileira, financiar um curso superior segue sendo uma condição disponível para escassa parcela da população. Somente com esse dado, já seria baixa a expectativa de retorno com relação ao FIES. Portanto, não é demasiado perguntar: em que medida houve o tal retorno prometido nas suas justificativas?
Como já se pode observar, está longe de ter ocorrido para a maioria desse público que cursou ensino superior com bolsas Prouni ou contratos FIES. Na crônica jornalística, bem como nas justificativas governamentais, costuma-se atribuir isso à crise de anos recentes e, nos últimos 2 anos, ao problema da pandemia. Certamente são elementos do processo, mas não se põe em destaque aquela parte da “promessa” que também se frustrou em decorrência da precária formação que essas instituições oferecem, sobretudo aquelas que mais ampliaram seus rendimentos com o FIES. O tema é silenciado pois envolve um ponto nevrálgico: o do ensino superior como atividade econômica e que, como tal, a sua qualidade também se mede em lucro. A lógica que não se quer questionar é cristalina quando se analisam os benefícios que o FIES produziu para os conglomerados do ensino superior que hoje negociam ações em bolsas de valores, dentro e fora do país: sua atividade principal deixou de ser o ensino e passou a ser a rentabilização financeira. Este tema é tabu para a imprensa brasileira, para o governo e eventuais postulantes a ele, razão pela qual se persiste em tratar o problema atual, sobretudo, como de endividamento individual.
Enfim, são várias as questões que merecem estudos mais detidos, para citar algumas: a formação de um mercado privado de financiamento, impulsionada pela expansão desses programas estatais; as novas disputas pelo uso do fundo público que, hoje, estão na mesa de negociações do setor privado de ensino e o governo brasileiro, impulsionado pela pandemia e pela empolgação com o “ensino remoto”; a mudança radical que aflige o campo educacional e as propostas de formação, com tendência de esvaziamento do sentido convencional dos cursos superiores e uma crescente pulverização de tipos de formação mais rápidos, fragmentários, mais baratos e, por certo, muito mais rentáveis. Entre os ditos inadimplentes do FIES podem estar milhares de jovens que sequer conseguiram completar seus cursos[9]. Anistiar suas dívidas, neste caso, é estratégico para as IES privadas que, evidentemente, pretendem seguir usufruindo da possibilidade de novos contratos nos processos futuros de expansão.
Para finalizar, se tomarmos como exemplo a forma de tratamento dado pela Folha de S. Paulo ao problema do FIES ao longo da última década, identificamos algo emblemático: começou a década de 2010 qualificando como “bem-vindas” as mudanças no programa[10], época em que já se apontava para o problema do endividamento crescente; à medida que o governo Dilma Rousseff foi enfrentando dificuldades para manter apoio político e adotando medidas consideradas inadequadas pelo mainstream econômico, o jornal passou a criticar o programa, não necessariamente por seus problemas “técnicos”, mas no bojo da política econômica do governo e dos conflitos políticos que animaram o período pós-2013; as críticas ao FIES foram se tornando mais duras à medida que a oposição ao governo ganhava ares de arregimentação golpista, quando então o seu editorial passou a falar que “o retrocesso do FIES era inevitável” depois que a “crise orçamentária” entrara em “fase aguda” após as eleições 2014[11]. Hoje, por já estar posicionada em relação ao que vamos enfrentar nas eleições de outubro, fala-se em “populismo” para se referir ao perdão das dívidas[12], mas segue sem poder falar contra a essência de programas desse tipo, salvo pela sugestão de que poderia haver melhorias, o que, evidentemente, significa ampliar a sua subordinação ao interesse econômico envolvido no caso (das IES privadas e do próprio mercado de crédito estudantil).
Não será surpreendente se daqui a um ano, quando estiver se iniciando um novo governo, a Folha e os setores que representa voltem a defender, com entusiasmo, um massivo programa de transferência de recursos públicos para o ensino privado. O discurso de que a crise econômica é a causa do atual endividamento estudantil trocará de lugar, passando a ser (como no editorial de 2016) a consequência: ou seja, que sem programas como o FIES, faltará mão-de-obra qualificada e isso inviabilizará o crescimento econômico. Tudo isso, mantendo, é claro, seus costumeiros “argumentos” para atacar o ensino e as instituições superiores públicas – como locais de ineficiência, de corporativismo, de pouco retorno à sociedade, etc.
Entre o que a classe dominante e seus porta-vozes podem ou não podem dizer abertamente, uma coisa é clara: o que está em jogo é a possibilidade de restabelecer mecanismos para garantir a rentabilidade dos capitais que, em sua composição ampla, mantêm investimentos no ensino superior brasileiro. E quando a educação se subordina à lógica do capital, ter qualidade é lucro.
[1] Informação divulgada pela Revista VEJA em 06/01/2022, em matéria assinada por Josette Goulart.
[2] O mais conhecido deles é “Ivory Tower” (Torre de Marfim, na versão brasileira), dirigido por Andrew Rossi e lançado em 2014, que traça um quadro bastante complexo do ensino superior estadunidense, abarcando não apenas o problema do endividamento estudantil, mas também mostrando as facetas da mercantilização de algumas instituições, o declínio e precarização de instituições tradicionais que tardaram a fazer uma guinada mercantil, a farsa das promessas do ensino online, dentre outros.
[3] Ver em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/06/28/e-uma-bomba-relogio-por-que-cada-vez-mais-universitarios-tem-de-pagar-dividas-cada-vez-maiores-apos-se-formar-nos-eua.htm
[4] Ver em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/milhares-de-estudantes-universitarios-nos-eua-passam-fome-e-nao-tem-onde-dormir-revela-pesquisa.ghtml. Em outubro de 2021, o governo Biden anunciou a pretensão de anistiar parte das dívidas estudantis, o que mostra haver certa tendência nesse tipo de procedimento ora proposto no Brasil. Ver em: https://exame.com/mundo/governo-biden-vai-perdoar-us-174-bi-em-divida-estudantil-apos-reforma/
[5] Politicamente, esse movimento tem se expressado como esvaziamento do sentido de educação pública, em favor de artifícios como o de fortalecer a noção de “educação gratuita”. Essa forma de fazer política social típica do neoliberalismo foi especialmente presente durante a elaboração do Plano Nacional de Educação (2014-2024).
[6] Para uma leitura completa e abrangente desse processo, envolvendo os grandes grupos privados atuantes no Brasil, ver o trabalho de Allan Kenji Seki, O capital financeiro no ensino superior brasileiro (1990-2018). Disponível em: http://editoriaemdebate.ufsc.br/catalogo/wp-content/uploads/ALLAN_SEKI-CAPITAL-FINANCEIRO-NO-ENSINO-SUPERIOR.pdf
[7] Para uma análise desse caso, recomendo a dissertação de Gustavo Henrique Rossatto Francisco, Análise das características do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) em Instituições de Ensino Superior do município de Ribeirão Preto entre os anos de 2010 e 2018. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/59/59140/tde-29072020-130624/pt-br.php
[8] Estamos tratando da Medida Provisória 1.090/21, editada e publicada pelo governo brasileiro em 30/12/2021, no Diário Oficial da União.
[9] Infelizmente, os dados mais acessíveis sobre o FIES não permitem uma análise mais abrangente desse aspecto.
[10] Editorial da Folha de S. Paulo, de 05/05/2010, intitulado “Crédito educativo”.
[11] Editorial da Folha de S. Paulo, de 16/08/2016, intitulado “Encalhe no Fies”.
[12] Editorial da Folha de S. Paulo, de 03/01/2022, intitulado “Populismo no Fies”.
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