Produtivismo: o normal patológico da universidade no século XXI?
Os homens são levados, inconscientemente, a defender decisões e a lutar por soluções que concorrem para alimentar processos sociopáticos de desenvolvimento institucional. Isso […] sucedeu de forma particularmente intensa e nociva na esfera do ensino superior. Não se pode, sequer, dizer que “não houve tempo” para corrigir a “escola superior-problema”. (Florestan Fernandes, 1979, p. 59).
Tornou-se convencional celebrar quando instituições brasileiras (notadamente as universidades públicas) aparecem em rankings internacionais de desempenho. A cada vez que uma ou mais dessas instituições galgam posições nos ranqueamentos ou, ainda, quando se posicionam à frente de suas similares latino-americanas, um sem número de comentários positivos vêm a reafirmar sua relevância. Nem sequer setores do pensamento crítico, avessos ao neoliberalismo, às práticas eficientistas e à lógica competitiva, estão imunes a essa influência.
Um critério tem sido central nessa celebração: a qualidade dessas instituições teria como expressão a quantidade de publicações científicas. Matéria publicada em 2019 pelo jornal da maior instituição universitária pública brasileira, a USP, apresenta as instituições de pesquisa como “fábricas de conhecimento”. Curiosamente, nessa mesma matéria, que também celebrava os rankings e a posição daquela instituição como a maior de todas as “fábricas”, citava-se uma pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações que, após entrevistar quase 2 mil pessoas, constatou que apenas 13% delas souberam citar o nome de pelo menos uma instituição de pesquisa nacional.[1] Assim se manifestou o autor da matéria:
O estudo retrata um cenário preocupante, em que as universidades não são percebidas pela população como instituições de pesquisa, apesar de serem elas as responsáveis pela maior parte da produção científica nacional. (ESCOBAR, 2019).
Uso esse exemplo para mostrar que essas duas concepções – se não antagônicas, pelo menos contraditórias – têm convivido muito bem: o reconhecimento de que há uma dificuldade de percepção sobre a relevância social das universidades e instituições de pesquisa, por um lado, e a noção de que essa relevância estaria autorrevelada pela forma e quantidade dessa produção. E que, ademais, por meio das publicações científicas estaria garantido o benefício social mais amplo da “fábrica de conhecimento”.
A questão que se abre, então, é: tentar justificar a relevância das universidades públicas e instituições de pesquisa por meio das recorrentes “celebrações” (ranqueamentos e quantitativos de produção científica, entre outros) revela o que sobre a relação dessas instituições com a sociedade em geral? O que diz sobre as formas de inserção social delas e, também, sobre a forma como se tem organizado e viabilizado essa alta “produtividade”, mesmo que não reconhecida socialmente de modo mais amplo?
Produtivismo não é somente quantitativismo
O uso do termo produtivismo se tornou comum para criticar um conjunto de políticas que, desde a década de 1990, passou a orientar a produção acadêmica brasileira. Foram introduzidas exigências para que o trabalho de pesquisa fosse metrificado e avaliado com critérios objetivos, tendo que atingir, por exemplo, X nº de publicações e/ou de “produtos” per capita. Seu principal veículo foi o sistema de avaliação CAPES da pós-graduação.
O produtivismo é mais do que isso: é uma forma determinada de organizar toda a atividade universitária, portanto, o ensino, a pesquisa e a extensão; uma forma específica de produção e disseminação do conhecimento[2]. Não é a mesma produção em versão expandida, como numa máquina em que se aumentasse o ritmo para produzir mais ao final de um ciclo. Essa é apenas sua faceta mais perceptível.
O sucesso das políticas produtivistas não se dá quando a instituição universitária produz mais ou quando o trabalho nela se torna mais produtivo, mas quando os seus efeitos atingem aquilo que é essencial nas finalidades dessa instituição. Sua função, assim, tem sido a de realinhar a universidade pública brasileira[3], principal nicho de produção científica e formação de força de trabalho de alta qualificação no país, aos ditames da nova forma de organização do trabalho científico no capitalismo global.
Esse realinhamento ocorre em período de crise estrutural do capitalismo, que força o capital e seus representantes a buscarem a todo custo formas de recomposição das taxas de mais-valia e lucratividade. E como a ciência e a tecnologia ocupam lugar privilegiado nesses processos, a sua produção também passa a ser nicho estratégico da recomposição. Como diria Marx no livro 3 d’O Capital, nela também passa a se expressar a violência direta das relações capital-trabalho.
Um realinhamento que sufoca ao máximo a capacidade de produção autônoma de conhecimento científico e tecnológico – sem poder elimina-lo por completo – mas recalibrando-o ao sabor dos interesses hegemônicos de alguns setores. No Brasil, basicamente, os setores extrativistas e agropecuários primário-exportadores e os de serviços.
O tempo e o produtivismo
Para se implantar, o produtivismo precisa ser radical quanto às formas de controle do tempo, dimensão necessária em qualquer processo de trabalho, quanto mais no de elaboração e/ou produção do conhecimento. Quase sempre o faz de modo a associar produtividade e exiguidade de prazos para essa produção. Mas critérios desse tipo, por si só, criam outras finalidades: aceleram o tempo da produção de tal maneira que quase a paralisam, tornando-a mero fazer; do que resulta apenas “produto” a ser validado pelas regras de produtividade. Poder-se-ia dizer que essa aceleração gera antes inquietação que criatividade: “Pura inquietação não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente”.[4]
Uma das expressões disso é a elevação da inovação ao núcleo de tudo o que se refere à política científica e tecnológica vigente no país, seja no plano federal, seja no interior das próprias instituições. Inovar é um termo ambíguo, pois, ao mesmo tempo, sugere uma relação íntima com a produção de novos conhecimentos, mas também pode significar apenas a reiteração de conhecimentos já existentes, reorganizados para servir à finalidades específicas. Quando a política de produção científica e tecnológica passa a estar subordinada à inovação, a racionalidade instrumental do conhecimento é radicalizada. Toda e qualquer produção de conhecimento passa a ter como objetivo se tornar produto novo, a ser disposto no mercado e sob a tutela do capital privado.[5]
Trata-se, aqui, de um controle decisivo sobre a temporalidade da ciência e da tecnologia, subordinada aos ditames do mercado e da obsolescência programada. Como as dinâmicas de tempo são muito desiguais nas diferentes áreas de conhecimento, acreditou-se por longo período que o problema do produtivismo é que ele buscava impor a todas as áreas os critérios e diretrizes que (supostamente) funcionariam bem em algumas delas. Sem avaliar o sentido mais profundo dessa mudança, porém, isso pode se converter numa crítica superficial e, no caso das ciências humanas- as mais prejudicadas nesse processo, levar à falsa solução de que poderiam ser “ajustadas” a outros critérios menos danosos que os das “áreas duras”, mas ainda assim de produtividade.
Inovação e internacionalização: práticas e ideologia
Forma par com a inovação outra diretriz das mais decisivas no produtivismo acadêmico – a internacionalização. Não há espaço, neste texto, para um tratamento mais detido dessa questão; mas é preciso dizer que o processo de internacionalização, hoje vendido com ares de novidade, remonta a um padrão estruturante da educação superior no Brasil: a sua heteronomia cultural. É nesse âmbito que a internacionalização ganha mais ou menos terreno no meio universitário, sendo seu fundamento último a condição de dependência econômica. Se até a Ditadura essa condição estrutural podia conviver com graus relativos de autonomização na universidade, é certo que depois desse período o avanço contrarrevolucionário passa a ser cada vez mais hegemônico. Nas décadas de 2000 e 2010, ser internacional foi se convertendo numa finalidade em si mesma, atingindo no coração o financiamento à pesquisa e as formas de avaliação da qualidade[6].
A despeito da promessa de algo como a superação das “fronteiras” – na relação entre universidade e setor produtivo (inovação) e entre instituições nacionais e estrangeiras (internacionalização) – a lógica inovacionista-internacionalizante ergue novas barreiras, aprofundando as desigualdades já existentes entre instituições e, dentro delas, entre áreas de conhecimento. Tendo como modus operandi a competitividade, instituem-se relações em que não há lugar para todos/as e, portanto, não basta estar bem posicionado: é preciso renovar sistematicamente essa condição, deixando para trás os/as que estarão também buscando um lugar ao sol.
O inovacionismo internacionalizante pode mudar bastante as feições e práticas universitárias, mas não muda em nada a sua baixa capacidade de conexão com as demandas das maiorias. Atualiza-se o “isolamento cultural” das escolas superiores, fazendo com que seu “normal” seja algo patológico[7]. Um normal em que milhões do fundo público são gastos com a finalidade de “inovar” e “internacionalizar”, ao passo que necessidades elementares da população brasileira, como aquelas que envolvem, por exemplo, a própria escolarização, permanecem intocadas. Frente a uma produção cada vez mais volumosa, perguntas como a quem serve ou a quais interesses atende parecem não estar mais autorizadas.
O fetichismo dos ranqueamentos e/ou quantitativos de produção, hoje tornados naturais e regulares, tem parte essencial nisso. Os ranqueamentos internacionais tentam produzir uma falsa equiparação entre as instituições universitárias dos países “competidores”. Efeito este em que os resultados são atribuídos às diferenças das próprias instituições isoladamente, como se nada tivessem que ver com as políticas de seus países e suas formas de posicionamento frente ao capital global. Melhorar no ranking seria, assim, a forma por excelência de superar as desigualdades sobre as quais se erguem tais diferenças. Na lógica metrificada, o que põe em movimento a produção é o motor da busca por desempenho.
É possível pensar numa universidade não produtivista?
Sabe-se que o produtivismo não se implementou e se consolidou nas instituições universitárias brasileiras como mera imposição externa, como coerção[8]. Parte das comunidades acadêmicas não só aderiu a tais processos como o produtivismo se viabiliza porque opera estimulando o autoengajamento: institui formas de controle cuja eficácia é maior justamente por não precisarem necessariamente da coerção[9].
Há quase 40 anos, Chauí fazia a seguinte síntese:
Para muitos de nós [professores universitários] que não aderimos à mística modernizadora, parece incompreensível a atitude daqueles colegas que se deixam empolgar pela contagem de horas-aula, dos créditos, dos prazos rígidos para conclusão de pesquisas, pela obrigatoriedade de subir todos os degraus da carreira (que são graus burocraticamente definidos), […] pela confiança nos critérios quantitativos para exprimir realidades qualitativas, pela corrida aos postos e aos cargos. […] Aqueles que aderiram ao mito da modernização simplesmente interiorizaram as vigas mestras da ideologia burguesa: do lado objetivo, a aceitação da cultura pelo viés da razão instrumental, como construção de modelos teóricos para aplicações práticas imediatas; do lado subjetivo, a crença na “salvação pelas obras”, isto é, a admissão de que o rendimento, a produtividade, o cumprimento dos prazos e créditos, o respeito ao livro de ponto, a vigilância sobre os “relapsos”, o crescimento do volume de publicações (ainda que sempre sobre o mesmo tema, nunca aprofundado porque apenas reescrito), são provas de honestidade moral e seriedade intelectual. Para boa parte dos professores, além do benefício dos financiamentos e convênios, a modernização significa que, enfim, a universidade se tornou útil e, portanto, justificável.[10]
É importante, no entanto, evitar o entendimento de que o produtivismo contemporâneo seja uma mera escolha dos sujeitos que fazem a universidade. Não se trata disso. O que nos interessa é apontar que a força dessa reorganização produtivista da universidade está, sobretudo, no fato de que seus mecanismos vão criando formas (individuais e coletivas) de impulsionar o autoengajamento. E este é um processo em que as identidades vão se perdendo, porque cada vez menos definidas pelo trabalho concreto e pelas formas específicas de inserção dessa produção na vida social, e mais pelo lugar que ocupam frente a essa padronização das formas: a quantidade de “produtos”, a posição no “ranking”, a “métrica” das citações, a “nota” na avaliação do programa, a “classificação” da revista, e assim por diante.
Do ponto de vista coletivo, opera-se também uma reconstrução da memória sobre essa universidade pré-produtivista, cujos termos de comparação (excessivamente quantitativistas e ranqueadores) fazem com que só se possa pensar sobre o passado como um período ruim[11]. Daí a manipulação rasteira a que se recorre, na tentativa de desqualificar as críticas, de dizer que o oposto do produtivismo seria o improdutivismo. Neste sentido, o discurso produtivista impõe às universidades públicas aquilo que um dia o neoliberalismo pretendeu com relação ao capitalismo: teríamos atingido o “fim” da história, podendo, no máximo, aperfeiçoar o existente.
A universidade e o trabalho acadêmico não produtivistas, ao nosso ver, pressupõem uma lógica voltada para o atendimento às necessidades reais e concretas das maiorias. É o produzir com sentido social e democrático, situação que a rigor, só nos foi possível em períodos muito curtos de nossa história. Algumas das configurações das universidades públicas que foram fundamentais para garantir minimamente esse caráter são: a ampla gratuidade das atividades; os regimes de trabalho com estabilidade e dedicação exclusiva; o financiamento público para instituições públicas; a autonomia para produzir e disseminar conhecimentos, sem obedecer à lógica do interesse privado e do conhecimento como mercadoria. A gestão democrática das instituições é outro aspecto decisivo que sempre esteve muito aquém do necessário.
Por isso, uma compreensão sobre os fundamentos históricos e concretos do funcionamento da universidade pública hoje, e de como chegamos ao produtivismo, é tarefa necessária para evitar que se imagine ser possível desfazer os efeitos deletérios do produtivismo querendo “melhorá-lo”. Seus próprios mecanismos já impedem isso, pois assentados na heteronomia cultural, no isolamento social da universidade e no caráter dependente do capitalismo brasileiro. Uma universidade não produtivista nada tem a ver com um retorno ao passado: só pode ser algo novo, a ser construída e orientada por novos projetos de sociedade.
Produtivismo, desempenho e futuro
Em Sociedade do cansaço, Han defende que o homem contemporâneo é um ser cansado, não pelo excesso de controles, disciplinamento e negação (o que não pode fazer), mas por que é estimulado – e cobra a si próprio por isso – a fazer tudo, a um excesso de positividade em que o desempenho é palavra de ordem. Os adoecimentos psíquicos típicos dessa sociedade seriam as manifestações patológicas principais de algo que ele chama de “liberdade paradoxal”, isto é, a liberdade de poder fazer sem poder efetivamente; que não pressupõe o negar, mas o fazer excessivo, o desempenho[12].
Estaríamos vivenciando isso no âmbito do produtivismo acadêmico? Não há sentido em que o sistema atual seja mais produtivo do que na criação e recriação das condições de sua própria manutenção; ou seja, de ser útil ao regime vigente. No caso brasileiro, trata-se da submissão aos dinamismos da acumulação capitalista global: por um lado, com forte acento na esfera financeira – do que os permanentes “ajustes fiscais” e cortes nos gastos públicos são uma dimensão fundamental e perniciosa para a educação superior; por outro lado, o da compulsória anexação da produção acadêmica à lógica hegemônica de alguns setores, organizados cada vez mais em redes internacionais de produção de conhecimento que, a rigor, terceirizam para essas instituições parte dos custos de pesquisa e desenvolvimento que as empresas não vão pagar (há força de trabalho e estrutura física disponível e que, com o apoio estatal, se tornam extremamente baratas para o capital privado na forma de “parcerias”)[13]. Ao passo que, para os setores não afeitos a esse padrão, os controles do produtivismo continuam a produzir efeitos, com a tendência de que se marginalizem cada vez mais[14].
Apesar desse impulso autopredatório, setores não desprezíveis das universidades têm defendido que o problema é tornar visíveis os seus “feitos”, razão pela qual as estratégias de divulgação seriam mais relevantes do que as de produção (o que, como e para quem produzir). Seria essa uma justificativa para o desconhecimento da população em geral em relação às instituições de pesquisa e universidades públicas. Mas uma pergunta decorre disso: pode uma universidade produtivista justificar sua relevância social usando critérios que façam sentido para a população em geral e que não sejam um mero reafirmar dos feitos do produtivismo?
Parece-nos que as universidades públicas não estão se transformando em fábricas de conhecimentos, como sugerira a matéria citada no início, mas em usinas do próprio produtivismo[15] (publicações, citações, quantos projetos foram financiados, quantas bolsas produtividade obtidas, intercâmbios no exterior, projetos de pesquisa em rede, posições em rankings internacionais, indicadores atingidos, perfis de excelência, etc.). Quando se consolida esse modus operandi, a finalidade do que se produz passa a ser outra e os mecanismos de controle (avaliação e gestão) podem continuar a operar e se intensificar, não tendo qualquer condição – nem intenção – de atestar qualidades formativas e/ou de conhecimentos produzidos[16].
Tragicamente, aquela pesquisa também citada no início deste texto talvez revele, por tudo isso, algo bem mais concreto: que para a imensa maioria da população, o que a universidade produtivista produz e eleva ao lugar mais importante, de fato, pouco lhe interessa. A mediação das relações “produtivas” nas universidades, configuradas da maneira que se tentou discutir nesse texto, são relações que carregam consigo as marcas da violência capitalista, sem qualquer mecanismo de solidariedade possível, o que se reflete na degradação das relações no meio acadêmico e também na forma de relação em geral das instituições com a sociedade. Por que se haveria de esperar um reconhecimento mais amplo?
Em tempo, para que não se conclua apressadamente: sim, as universidades públicas não são homogêneas e, em seu interior, se produz muito conhecimento relevante e socialmente referenciado. Resta saber se essa dimensão vai sobreviver ao tempo. E mais importante: como vamos nos posicionar social e coletivamente face a essa tendência. Esperaremos que os níveis de engajamento predatório do produtivismo tenham chegado a um ponto de não retorno? Para os/as que hesitam, diria (com Brecht): “não espere nenhuma resposta senão a sua”[17].
[1] A pesquisa é de 2015. Ver: ESCOBAR, Herton. Fábricas de conhecimento. O que são, como funcionam e para que servem as universidades públicas de pesquisa. Disponível em: <https://jornal.usp.br/ciencias/fabricas-de-conhecimento/>. Acesso em: 10 nov. 2020.
[2] O termo “universidade operacional”, usado por Marilena Chauí para se referir a essa mudança de sentido que a instituição passava a enfrentar, é bastante emblemático.
[3] A partir daqui deixarei de fora os institutos públicos e outras instituições de pesquisa para focar a análise nas universidades.
[4] Byung-Chul Han, Sociedade do cansaço (2019, p. 21).
[5] O programa Future-se, lançado midiaticamente pelo governo brasileiro em 2019 e transformado no PL 3076/2020, apresentado ao Congresso Nacional em 02/06/2020, é a mais atual tentativa de generalizar esse padrão de funcionamento nas instituições federais (universitárias ou não).
[6] A maior fundação de amparo à pesquisa do país, a Fapesp, que recebe 1% da arrecadação de ICMS do estado de SP (R$ 1,35 bilhões em 2019), passou a adotar em 01/09/2020 um critério de seletividade ainda mais rigoroso para solicitações de bolsas e auxílios. Segundo essa exigência, é preciso ter “experiência demonstrada em projetos de pesquisa internacionalmente competitivos” e, ademais, que os/as orientadores/as demonstrem “experiência internacional em pesquisa após o doutoramento” ou “participação ativa em redes internacionais de colaboração em pesquisa”. Na avaliação dos periódicos científicos feitas pela CAPES (Qualis), a existência de critérios “internacionais” é predominante e tende a avançar cada vez mais, criando situações bizarras como a de áreas inteiras de conhecimento que – por princípio – não reconhecem as publicações feitas em língua portuguesa como “de excelência”.
[7] Florestan Fernandes, Universidade brasileira: reforma ou revolução?, 1979, p. 59.
[8] O longo processo dessa mudança está documentado e analisado em muitos estudos, ensaios críticos e produções científicas. Como sugestão, indicaria as leituras de: SGUISSARDI, V.; SILVA JR., J. dos R., Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico (2009); LEHER, R., Universidade e heteronomia cultural no capitalismo dependente: um estudo a partir de Florestan Fernandes (2018), BIANCHETTI, L.; VALLE. I.; PEREIRA, G. O fim dos intelectuais acadêmicos?: induções da CAPES e desafios às associações científicas (2015), e RAMPINELLI; OURIQUES (Org.). Crítica à razão acadêmica: reflexão sobre a universidade contemporânea (2011).
[9] As atuais formas de avaliação, seja dos programas de pós-graduação stricto sensu, seja de instrumentos como o “qualis”, são formas concorrenciais e que, por isso, instituem um estado permanente de tensão e dúvida sobre o trabalho que está sendo desenvolvido por docentes/as e pesquisadores/as. É um choque de temporalidades antagônicas (a da produção do conhecimento e as do produtivismo), no qual nunca se sabe se um trabalho realizado será “validado” academicamente, pois sempre submetido a parâmetros que discriminam uma produção da outra. A rigor, a finalidade passa a ser estar na frente (e mostrar que está) e não ter alcançado um certo padrão de qualidade.
[10] CHAUÍ, M. Escritos sobre universidade (2001, p. 63). O texto citado é original de 1980.
[11] O distópico 1984, de George Orwell, pode funcionar como inspiração para refletir sobre esse processo.
[12] HAN, 2019, p. 19.
[13] Tramita no Congresso Nacional a proposta de instituir um “Marco Legal” das Startups, campo estratégico para viabilizar a apropriação privada dos conhecimentos produzidos nas universidades públicas. Sabemos que grande parte das Startups não se convertem em negócios futuros; e que parte delas cumprirá um papel central, a saber, de serem absorvidas pelos grandes capitais à medida em que ultrapassem uma fase em que riscos, custos e incertezas já não são mais impeditivos à rentabilidade de seus negócios. A ajuda do fundo público é essencial para isso e se cria, desse modo, o melhor dos mundos: não para os/as “jovens empreendedores/as” que se aventurarão nesses projetos; mas para os capitais já consolidados que, assim, nada precisam gastar com tais inovações.
[14] A exclusão das humanidades em editais de fomento à pesquisa do CNPq é exemplo emblemático dessa tendência.
[15] Bianchetti, Valle e Pereira (2015, p. 88) afirmam que os intelectuais acadêmicos se “institucionalizam”, tornando-se “funcionários dedicados a preencher requisitos predeterminados para não serem excluídos”, o que gera a necessidade de uma “cultura na academia que tanto dissolve a definição do que se entende por intelectual quanto restringe a abrangência de sua práxis”.
[16] Aproveito uma ideia elaborada por Catini (2020), aqui adaptada ao objeto desse texto: “A avaliação é real, a educação fictícia. Mesmo que não haja processo educativo a avaliação e os mecanismos de seletividade são onipresentes”.
[17] Bertold Brecht, Aos que hesitam.
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