Jornal socialista e independente

Lalo Minto

É professor da Faculdade de Educação da Unicamp. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Crítica Social (GEPECS). Autor de: A educação da miséria: particularidade capitalista e educação superior no Brasil e As Reformas do Ensino Superior no Brasil: o público e o privado em questão.

O fim da ciência e a ciência sem fim

03 de dezembro, 2021 Atualizado: 17:05

Cortes orçamentários em recursos destinados ao fomento à ciência no Brasil têm sido recorrentes, pelo menos, desde o ano de 2015. Órgãos como CNPq, CAPES, sofreram duras contrações nesse período. Na outra ponta, as próprias instituições responsáveis pela execução das atividades de pesquisa, sobretudo as universidades públicas, vêm sofrendo igualmente pela escassez de recursos, a precarização das condições de trabalho, o enxugamento dos quadros.

Os ataques ao campo científico no Brasil, como se sabe, não são apenas de ordem orçamentária. Eles têm se articulado em diversas outras frentes, como a mudança na concepção de conhecimento e produção científica, carreada pelo slogan da “inovação”, que restringe o potencial da ciência àquilo que pode ser produzido para atender a interesses imediatos e produzir resultados negociáveis no mercado (patentes, startups etc.); na subordinação a regras e diretrizes internacionais de uma política que reorganiza a divisão internacional da pesquisa e do conhecimento científico, reforçando a posição periférica e heterônoma de países como o Brasil; na ingerência estatal e empresarial sobre as instituições mais relevantes desse sistema – no caso do primeiro com as quase três dezenas de intervenções de Bolsonaro nas escolhas de dirigentes das instituições federais de ensino superior; no segundo, por meio da penetração crescente das empresas, fundações ligadas a elas, entidades ditas sem fins lucrativos, ONGs e outras, que têm peso cada vez mais decisivo sobre os rumos do fazer acadêmico e científico.

Por décadas temos assistido a esse processo, que ora tem tonalidades mais acentuadas, ora menos. Estupefata, uma parte da chamada “comunidade acadêmica” reage a tais ingerências e ataques, enquanto outra parte as celebra, apostando, talvez, na possibilidade de obter ganhos individuais ou, mesmo, pela simples ideia de se engajar na competitividade inerente a tais processos, para os quais não se promete nenhum tipo de benesse certa.

Neste ano de 2021, episódios envolvendo novos cortes de recursos previstos para o CNPq e a suspensão da avaliação CAPES dos programas de pós-graduação stricto sensu no país, fizeram essa reação se ampliar. Diversas universidades se manifestaram, o mesmo ocorrendo com entidades científicas, organizações estudantis, sindicatos, entre outros. À primeira vista, o cenário poderia parecer promissor, mas em seu bojo há algo revelador: as posições majoritárias dessa reação chegam a falar e temer até mesmo o “fim da ciência”, mas não conseguem sequer almejar o “fim” de algumas dessas políticas que nos trouxeram até essa conjuntura. 

Dessa forma, na ‘crítica’ dominante aos cortes não se observa nenhuma – quando muito, ela é genérica e rarefeita – relação entre cortes orçamentários e as políticas vigentes para o Estado brasileiro, como a EC 95/2016; entre a política vigente para a ciência e tecnologia e as desigualdades entre áreas de conhecimento; entre o produtivismo acadêmico, dominante e intocado por duas décadas e meia, e a lógica competitiva instalada nos mecanismos de financiamento à pesquisa; entre as pressões de ter que se internacionalizar e inovar a todo custo e o tipo de conhecimento que se produz; entre o padrão heterônomo de funcionamento e gestão das instituições de pesquisa e as ingerências políticas do governo nelas e em órgãos estatais estratégicos (CNPq, CAPES, Inep, etc.); entre o marco legal da ciência, tecnologia e inovação (2016) e as práticas predatórias cada vez mais recorrentes no meio acadêmico, que podem agora ser ainda mais esgarçadas caso seja aprovada a PEC 32, da “reforma administrativa”, em tramitação no Congresso. 

A lista poderia ser bem longa, mas já é suficiente para que se observe o mais relevante: a perda progressiva de um elemento fundamental para o “desenvolvimento” científico, por vezes reivindicado nessas manifestações: o pensamento crítico. Nesse sentido, o caráter grotesco, obscurantista e retrógrado do atual governo funciona como uma armadilha. A projeção sistemática dessas características passa a ser uma espécie de inimigo comum a ser combatido, enviesando tanto os fundamentos reais das mudanças em curso e que ameaçam a produção científica (a pandemia que não nos deixe enganar!), quanto as próprias “alternativas” a serem construídas, que tendem a ficar restritas a algo como uma “volta à normalidade”. Uma versão bastante resignada desse tipo de pensamento foi dada pelo ex-presidente do CNPq, Glaucius Oliva, para quem “A única esperança da ciência no Brasil é conseguir sobreviver até o fim desse governo”.[1]

Sem pensamento crítico, a “normalidade” pode ser exatamente aquela que nos trouxe até aqui: uma lógica de organização e produção científica pautada por critérios heterônomos, privatistas, competitivos, desagregadores e por um padrão de financiamento cuja exacerbação, sob a lógica neoliberal, tende exatamente ao enxugamento de recursos públicos. Não surpreende, portanto, que se possa vislumbrar o cenário mais trágico – o “fim”, a “agonia” da ciência – mas se tenha tão pouca condição de pensar e lutar por um outro fim – como finalidade – para a ciência. Sem aprofundamento crítico, até o “fim” se torna uma projeção abstrata, sem relação entre o que existe e suas tendências concretas.

É hora de rever com radicalidade esse processo, indo às suas raízes: fazer a crítica das políticas vigentes para a ciência e tecnologia (e inovação), bem como para a educação superior e todas as instituições decisivas para essa produção. Os ventos que sopram desde as perspectivas eleitoreiras para 2022, apontam apenas para o adiamento – curto e determinado – do problema. Seu horizonte, no máximo é o de um retorno à “normalidade” do pré-governo Bolsonaro – ou do pré-impeachment, a depender da leitura política que se faça. A prevalecerem essas “alternativas”, o fim realmente estará mais próximo.


[1] Afirmação registrada pela imprensa quando foram noticiados os últimos cortes sofridos pelo CNPq, da ordem de R$ 600 milhões, em outubro de 2021. Ver em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2021/10/25/cortes-ciencia-governo-bolsonaro-ex-presidente-cnpq-glaucius.htm.

As opiniões expressas nas colunas são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.

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