Ensino remoto: presente e futuro em disputa
O imperativo do distanciamento social, a despeito de seu apelo de urgência por conta da pandemia da Covid-19, vem contribuindo para reforçar uma antiga noção: a do uso das tecnologias no ensino como panaceia. A tentativa de justificar o ensino remoto como inevitável em face à pandemia[1], porém, não opera apenas na dimensão temporal do presente imediato. Nas suas entranhas se esconde uma outra temporalidade, nem sempre percebida quando predomina o senso de urgência: o uso mais intensivo das tecnologias – sobretudo as digitais – envolve uma disputa pelo futuro da educação.
Em tempos de massificação do uso da internet, em que mudanças estruturais no mundo do trabalho têm sido operadas com o uso das “plataformas” e “aplicativos”, e de expansão incontrolada do EAD, modificando o campo educacional, a adoção do ensino remoto não é apenas uma escolha para atender a contingências imediatas como a mera continuidade do ensino; ela tem consequências decisivas sobre o futuro da educação.
Menciono um exemplo. Não há país que conheça, tão bem como o Brasil, os efeitos deletérios do uso indiscriminado de tecnologias na educação quando seu intuito é potencializar a mercantilização e a lucratividade do setor educacional privado. Temos uma rede privada superior que em 2018 já ultrapassava 2 milhões de matrículas na modalidade à distância, sendo que 40% dos ingressantes daquele ano o fez nessa condição. Esse é um quadro que tende a se ampliar, pois os grupos privados têm reafirmado que suas estratégias para expansão dos negócios passam pelo uso dessa modalidade, mais barata e rentável do que os cursos convencionais.
Com esse exemplo não se quer afirmar que o uso de tecnologias no ensino seja sinônimo de ensino a distância, mas pontuar que essa experiência concreta é significativa demais para que seja ignorada. Dois milhões de matrículas não é um desvio, mas a indicação de uma tendência crescente[2]. Estamos falando de consequências sobre a qualidade do ensino, muito aquém do que se poderia chamar de “razoável” e, também, da sua relação com uma dinâmica mercantil predatória que esse setor institui no ensino superior brasileiro. Quando isso é analisado em vista da vinculação visceral do setor com o capital fictício, a preocupação é ainda maior pois o ensino superior tem se tornado um dos mais rentáveis negócios financeiros, caracterizando uma inversão de finalidades, em que a formação passa a ser apenas meio para a realização da acumulação financeira, que se torna o objetivo principal.[3]
Quando se assume acriticamente que o ensino remoto, ou formas similares de adoção de tecnologias no ensino, é uma necessidade inevitável do presente, tenta-se ocultar esse contexto prévio, isto é, as razões pelas quais se chegou a um quadro como esse no ensino superior. Talvez por isso é quea dinâmica das decisões sobre implementar ou não alternativas remotas de ensino vem, quase sempre, eivada de mistificações e pouco afeita a debates mais amplos.
Uma dessas mistificações remete a um artifício em que a própria pandemia é transmutada: de problema gerador passa a ser vista como solução. A remotização é justificada como imperativo do presente e, ao mesmo tempo, de um processo de modernização, apontado como futuro (desejável). A mistificação se amplia à medida em que tanto no setor privado como em partes do público celebra-se o “sucesso” desse ensino, sem remeter a qualquer questão de fundo e problemas como desigualdade de acesso e qualidade formativa, mas apenas à forma (número de atendidos, quantos acessos foram feitos, quantidade de redes e escolas que adotaram “alguma alternativa”, etc.). Os mais exaltados chegam a celebrar uma “revolução” no ensino e a pandemia como “janela de oportunidades” para modernizar as práticas de ensino, currículos, etc.
Outra forma de redução mistificadora é aquela que desconsidera o debate crítico já existente sobre a educação à distância no Brasil, bem como sobre as tecnologias de modo geral.[4] Como se não houvesse uma história, interesses materiais e sujeitos concretos na sua defesa, assume-se a tecnologia e seus usos num patamar próximo ao da neutralidade. Noção esta que acompanha, de perto, aquela de que na “era da informação” o conhecimento estaria livremente disponível nas redes, à espera de ser “acessado”. Dessa mistificação surgem termos pejorativos como tecnofobia e recusa da tecnologia, ora usados para desqualificar as críticas ao ensino remoto.
Tecnologias: meios ou fins do trabalho educativo?
Podemos nos fazer, aqui, a mesma questão de fundo que Marx se fez observando os setores mais avançados da produção industrial no centro do capitalismo no século XIX: estaríamos vivenciando uma etapa em que, progressivamente, o trabalho educativo passa a estar não só sendo “auxiliado” pelas tecnologias e suas máquinas, mas também deixando de estar no controle dele, que passa para as próprias máquinas? Seria essa a caracterização de uma revolução no trabalho educativo, no sentido que os entusiastas do ensino remoto atribuem, isto é, com a perda de relevância do sujeito-docente e o protagonismo do sujeito-educando?
Não temos a pretensão de responder a essa questão[5], mas a possibilidade de estarmos vivenciando tal mudança parece cada vez mais concreta. Exemplos disso não faltam e o mais enfático deles neste ano de 2020, no Brasil, foi o uso de robôs “corretores” por um grupo de ensino superior privado. A imagem, porém, de que tal mudança se completaria quando um autômato humanoide tomasse o lugar do trabalhador docente[6], não passa de uma alegoria, mais apropriada à ficção que ao mundo real.
Há dimensões desse processo que não ocorrem sob a forma direta – e aparente – de uma “substituição” das pessoas. Nesses casos, a questão da perda de centralidade do trabalho docente se expressa nas formas como esse trabalho se modifica dando origem a mecanismos de organização e gestão/controle que produzem efeitos muito parecidos com os da substituição. O adensamento das hierarquias, com um sem número de tutores, auxiliares, facilitadores do ensino, tem sido marca central do uso de tecnologias na educação, pública e privada. No segmento público, notadamente nas instituições que oferecem EAD (casos, por exemplo, da Univesp em SP e da UAB, no âmbito federal), que em grande medida se utilizam de força de trabalho contratada, quando há contrato, em regimes especiais, mas também bolsistas. Um único professor (com denominações variadas) pode se tornar responsável por centenas, quiçá milhares, de estudantes, auxiliado por tutores, facilitadores, etc. No setor privado, igualmente se reproduz essa lógica, em níveis mais avançados, cujo exemplo dos robôs da Laureate é apenas um.
Cada um desses trabalhadores e trabalhadoras, frutos de uma maior divisão do trabalho no setor, exerce para com o processo uma parte ainda mais reduzida do que faria um docente “convencional”. Quase sempre o controle dessas atividades – seu conteúdo, ritmos e intensidade – é mediado por sistemas informatizados, aplicativos ou softwares. O número de “operadores” e quantidade de atividades pode até crescer, mas se reduz drasticamente o número de pessoas que efetivamente têm controle do processo. Em suma, compõem uma força de trabalho mais precarizada e mais barata. Na linguagem marxiana, mais supérflua, facilmente substituível.
O uso dos aplicativos e dos chamados “ambientes virtuais de aprendizagem”, combinados ou não com expedientes como televisão e rádio durante esse período de pandemia, fazem isso de modo radical e em extensão, mesmo quando não se altera a condição formal dos trabalhadores/as em atividade na educação, caso da maior parte das redes públicas.[7]
O que vem pela frente?
Embora seja cedo para apreender todas as mudanças em curso na educação, bem como qual será o “legado” da pandemia para o trabalho educativo e o campo educacional como um todo, menciono a seguir algumas tendências que, com a segurança que a análise histórica dos períodos mais recentes lhe confere, já podem ser apontadas:
1) A expansão da oferta do ensino por meios “remotos” – já dominante no nível superior – é uma forma de ampliar a privatização da educação. Além de serem matrículas concentradas nas instituições privadas, estamos falando de máquinas, sistemas informacionais, enfim, tecnologias fazendo parte da ação educativa escolarizada pública ou privada; o que também significa que, cada vez mais, o processo educacional não se realizará sem o fornecimento dessas mercadorias e serviços pelas empresas.[8] A experiência recente mostra que essa estratégia funciona, ao mesmo tempo, como fator de redução de custos e de introdução de mudanças nas práticas pedagógicas, bem como nas de controle e gestão do trabalho (docente e não docente).
2) O custo dessas mercadorias e serviços dispostos como meios de trabalho e de estudo (as “tecnologias”) é elevado para a imensa maioria da população brasileira, por isso sua generalização amplia as desigualdades de todos os tipos que nosso sistema educacional já possui. Prejudica uma massa de estudantes e também o trabalho docente, que além de já enfrentar a perda de conquistas formais e o arrocho salarial sistemático, com a pandemia absorveu grande parte do custeio das atividades remotas, transferida à categoria numa lógica similar à das novas formas de exploração da força de trabalho, cujo proprietário é forçado a “empreender” as próprias condições e meios com os quais trabalha.[9]
3) No pensamento dominante, as noções de presença e distância no ensino tendem a se esfumaçar cada vez mais, como se estivessem ultrapassadas. Nesse sentido, advoga-se por um ensino que teria como qualidade intrínseca a não separação entre presença e distância, um artifício pseudológico para dizer que se parte da aprendizagem ocorre fora do ambiente escolar (por iniciativa do aluno ou de forma espontânea), o ensino seria “naturalmente” híbrido, isto é, parte presencial, parte não presencial.
Por trás disso estão posicionadas as ideologias que fragmentam artificialmente o ensino e a aprendizagem, alçando esta última à condição de protagonista. Difundidas por organismos internacionais, institutos privados, fundações e outras formas de aparelhamento privado, essas formulações tentam neutralizar todo um acervo crítico, motivador e resultado de lutas concretas no campo educacional, que aponta para a relevância das condições em que ocorre o processo de ensino-aprendizagem, ressaltando a inseparabilidade das condições objetivas e subjetivas para o trabalho docente, bem como deste em relação à estrutura social, política, econômica e cultural na qual se desenvolve.
4) Mudança nos sentidos do ensinar e do aprender e das expectativas sociais sobre a função da escola: o uso das tecnologias e da inovação[10] têm sido apresentados como promessa de superação do caráter maçante, tedioso, do ensino. Há um apelo abstrato por uma escola “estimulante”, “prazerosa” (com menos ensino e conteúdos), que se apoia numa noção de autonomia como algo construído ao bel-prazer dos/as educandos/as, sem tempo e lugar definidos, mas “acessando” permanentemente o conhecimento disponível na internet.
A relevância da escola, dizem os entusiastas dessa promessa, seria a de produzir gerações mais adaptadas ao mundo contemporâneo. E que mundo é este? De pessoas conformadas e dispostas a se engajar na própria precariedade, em face das incertezas e perda de perspectivas que o capitalismo nos aponta? Uma educação desse tipo é bastante conveniente para o capital, que anuncia um futuro em que a força de trabalho será cada vez mais obrigada a estar permanentemente disponível, sem distinção entre tempo de vida e atividade laboral. Talvez, a melhor tradução disso no campo educacional esteja se dando pelo uso e abuso de um termo eufêmico: protagonismo.[11]
Será possível concluir?
Nosso intuito foi mostrar que a decisão de adotar ou não o ensino remoto neste 2020 nem de perto se configura como uma decisão para atender apenas às contingências do presente. É preciso insistir: a pandemia cria situações novas e inusitadas, mas não “esvazia” ou “deixa para trás” a conjuntura de crise e de profundos retrocessos que a antecede. Nesse terreno é que precisa ser avaliado o ensino remoto, ou seja, de uma crise em que questões básicas do conhecimento científico, produzido e acumulado historicamente pela humanidade, bem como conquistas e lutas do campo educacional têm sido amplamente negadas.
Terá sido um grande experimento social do ponto de vista dos interesses privados na educação, ou, ainda, das concepções mais conservadoras que trabalham pelo esvaziamento sistemático da formação?[12]
O fato é que podemos esperar uma ampla celebração do “sucesso” do ensino remoto por muito tempo depois de passada a fase mais complicada da pandemia. Celebração acrítica e dissimulada que talvez até unifique interesses diversos: dos setores privatistas, potencializados com a adoção de seus produtos e serviços em escala nunca antes imaginada em tão curto período; das redes de ensino e gestores, celebrando o cumprimento de calendários e “metas” de aprendizagem (e de olho nas urnas, também); e de parte dos educadores e educadoras, na expectativa de um retorno à normalidade.
Até aqui, o cenário é evidente: o uso intensivo e extensivo das tecnologias mais recentes disponíveis está pavimentando uma “modernização” da educação que ocorre em simbiose com o retrocesso de conquistas elementares, reproduzindo aquilo que é mais característico do capitalismo periférico brasileiro: a composição do novo e do antigo (reiterado ou renovado), faces contraditórias de um mesmo processo. Nesse sentido, não deixa de ser curioso que um dos significados do termo remoto é, justamente, o de antigo[13].
Decisões tão relevantes para o campo da educação nunca são apenas assunto do presente. Talvez devamos, então, nos perguntar: quais são as nossas prioridades para o futuro da educação? De que maneira devem ser construídas no presente?
[1] Para uma leitura mais completa das muitas justificativas utilizadas nesse período, ver: 1) EVANGELISTA, O.; FLORES, R. Quando dói mais o bolso do que a alma, ou a “educação” do capital. 2) KRAWCZYK, N. As falácias da Educação a Distância se alastram com (e como) o Covid19.
[2] Em comparação, esse número é maior que o total de matrículas no nível superior em 1997.
[3] Parte significativa dessa atuação se dá em cursos de formação de professores, portanto, é literalmente o futuro da educação no país que está sendo subordinada de modo crescente aos interesses e lucratividade desses grupos.
[4] Sobre isso ver: BARRETO, R. G. A recontextualização das tecnologias da informação e da comunicação na formação e no trabalho docente. Educação & Sociedade, 33(121), 985-1002.
[5] Uma reflexão sobre essa questão pode ser vista em: ZUIN, V. G.; ZUIN, A. Á. S. A autoridade pedagógica diante da tecnologia algorítmica de reconhecimento facial e vigilância. Educ. Soc. [online]. 2020, vol. 41, e233820.
[6] Experimentos já têm sido feitos nos Estados Unidos, em países do sudeste asiático e na Europa. Para um exemplo disso, ver o caso da Finlândia.
[7] As muitas notícias sobre demissões massivas de professores e professoras no setor privado são o outro lado dessa mesma moeda.
[8] Sobre isso é essencial conferir a produção do “Educação Vigiada”.
[9] Sobre isso, ver ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
[10] Para ilustrar essa ideia, sugerimos conferir: https://compromissocampinas.org.br/inovacao-muda-os-caminhos-da-educacao-e-garante-ensino-atrativo-aos-estudantes/
[11] Protagonismo, nesse caso, ganha sentido eufêmico pois busca ocultar as formas pelas quais as contradições da relação capital e trabalho se expressam na educação. E o faz duplamente: tanto no sentido de prometer uma educação estimulante, supostamente produto das vontades e preferências do estudante, que é visto como um “cliente” que escolhe a própria formação, quanto no sentido de que busca fomentar o engajamento dos indivíduos na sua própria forma de vida precária (presente ou futura), para o que as ditas “competências socioemocionais” são fundamentais. Só não diz nada sobre outro protagonismo, este sim dominante, que é o do esvaziamento da formação escolar.
[12] Sobre isso, ver CATINI, C. O trabalho de educar numa sociedade sem futuro. 05/06/2020.
[13] No Dicionário Houaiss, a primeira acepção do termo é registrada assim: “1. que ocorreu há muito tempo; antigo, longínquo”.
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