A taxa e a massa de lucros
David Harvey é provavelmente o mais conhecido entre os economistas acadêmicos marxistas em todo o mundo. Ao longo dos anos, nos envolvemos, Harvey e eu, em diversas controvérsias e debates sobre a lei do valor em Marx, e em particular sobre a relevância da lei da queda tendencial da taxa de lucros. A posição de Harvey sempre foi cética quanto a relevância dessa lei para a explicação das regulares e recorrentes crises de produção e de investimentos capitalistas. No passado, argumentei contra o seu ceticismo não apenas no sentido de que a lei da queda tendencial da taxa de lucros seria pertinente para a explicação das crises como, em última instância, ela seria o próprio nexo causal entre as crises recorrentes do capitalismo e a lei marxiana. Aqueles que se interessam pelo tema, poderão obter a síntese desse debate neste texto e no excelente livro editado por Turan Subasat, intitulado “The Great Financial Meltdown: Systemic, Conjunctural Or Policy-Created?” (2016) – no qual, recomendo, em particular, a segunda parte, sobre as crises e as taxas de lucros.
Recentemente, o prof. Harvey gentilmente me enviou antecipadamente um artigo de sua autoria – que está publicado no número atual da New Left Review. Seu artigo é intitulado “Taxa e Massa” (‘Rate and Mass’, em inglês, N. T.)[1]. Nele, Harvey reafirma o argumento de que a análise das crises capitalistas requer uma preponderância analítica das massas sobre as taxas de lucros. Em certo momento do texto, ele afirma que: “os comentaristas mainstream não são os únicos a perderem de vista a importância da massa de lucros. Existe uma longa história de marxistas que também o fazem – notavelmente nos trabalhos sobre a queda tendencial das taxas de lucros”. E, ao final, comenta que, em particular, “os estudos de Michael Roberts sobre as consequências da queda da taxa de lucro, sofrem da ausência de qualquer preocupação substancial sobre a importância do aumento da massa de lucros”, oferecendo como referência ao seu comentário o meu livro, “The Long Depression” (2016).
Pois bem, ao leitor atento bastará chegar apenas até a página 26 para se deparar com o seguinte: “A contradição subjacente entre a acumulação de capital e a taxa de lucro (e, então, a queda na massa de lucros) é resolvida pelas crises”. E, ainda, na página 27, afirmo que “em cada ocorrência, (…) uma queda na massa de lucro levou ou coincidiu com uma recessão”. E, essas passagens não são isoladas, na realidade, em várias das páginas daquela seção de meu livro eu destaco o papel da massa de lucros nas elevações e depressões, além de apontar diversas outras fontes que fazem o mesmo.
Então, o que está realmente em questão? Como Marx afirma no Volume III[2] d’O Capital, “[…] apesar do enorme decréscimo na taxa geral de lucro […] O número de trabalhadores empregados pelo capital, ou seja, a massa absoluta do trabalho que este mobiliza, e, assim, a massa absoluta do mais-trabalho por ele absorvido, quer dizer, a massa do mais-valor por ele produzida, ou seja, a massa absoluta do lucro por ele produzido, podem então aumentar, e progressivamente, apesar da queda progressiva da taxa de lucro” (MARX, 2017, p 257). E, então, acrescenta que “e não só pode ser o caso, como tem de ocorrer necessariamente assim […] (pois) as mesmas leis produzem para o capital social uma massa crescente e absoluta de lucro e uma taxa de lucro decrescente” (MARX, 2017, p 257). E, então, Marx se pergunta: “De que forma, então, tem de se apresentar essa lei dúplice, que se traduz, por um lado, no decréscimo da taxa de lucro e, por outro, derivando das mesmas causas, no acréscimo da massa absoluta do lucro?” (MARX, 2017, p 258).
Como Marx deixa evidente, sua lei sobre o lucro capitalista tem um caráter dúplice. À medida que a taxa de lucro cai, é perfeitamente possível (e até mesmo provável) que a grandeza da massa de lucro aumente. Trata-se de uma realidade aritmética: considerando-se a relação formal da taxa de lucro, uma grandeza decrescente dela ainda pode ter implícito um aumento correspondente na massa do lucro[3].
Não obstante, justamente devido ao caráter dúplice da lei, ela possa atuar em ambas as direções. Como Marx detalha no Volume III d’O Capital (capítulo 15)[4], “Ambos os movimentos não só transcorrem paralelamente, mas se condicionam de maneira recíproca, são fenômenos nos quais se expressa a mesma lei” (MARX, 2017, p. 287). “(…) Uma superprodução absoluta de capital teria lugar tão logo o capital adicional para os fins da produção capitalista fosse = 0. (…) tão logo o capital acrescido produzisse uma massa de mais-valor igual ou menor do que antes de seu crescimento, teríamos uma superprodução absoluta de capital, ou seja, o capital incrementado C + ΔC não produziria um lucro maior, mas apenas igual ou até mesmo menor que o lucro do capital C antes de seu incremento por meio de ΔC” (MARX, 2017, p. 291). Assim, a massa do lucro pode e irá aumentar enquanto a taxa de lucro cai, e o incremento na massa do lucro irá eventualmente cair até o ponto de ‘absoluta superacumulação’, que marca o ponto de indicação para as crises capitalistas.
Ainda assim, o prof. Harvey deseja argumentar que Marx vislumbrava a massa do lucro como um fator preponderante para a análise das crises, relativo ao papel desempenhado pelas taxas de lucro. Penso que as citações demonstram como, para Marx, ambos são fatores totalmente interligados. Crises irrompem quando a massa do lucro cai, causando sobreinvestimento e superprodução, mas isso ocorre sempre quando a taxa de lucro caia o bastante para causar uma queda significativa na massa do lucro.
Em um recente painel realizado em Nova York, disponível no Youtube, intitulado Anti-Capitalist Chronicles[5], prof. Harvey compartilhou com a audiência suas últimas ideias a respeito da China, do imperialismo e das crises (o que pode ser conferido a partir do minuto 50, na gravação). Porém, logo em seguida, prof. Harvey esboça um comentário crítico sobre aqueles a quem ele chama de “os teóricos da taxa de lucros”, destacando particularmente minhas posições. Após apoiar as teses de Baran e Sweezy sobre o “lucro excedente” contra a lei marxiana do lucro, prof. Harvey destacou o modo como Michael Roberts estaria obcecado com a lei da queda tendencial da taxa de lucros, emendando seu comentário acadêmico com uma breve piada: “se (a taxa de lucro) começou mesmo a cair em 1850, já não era para ela ter chegado a zero até agora?”
Bem, por mais divertida que a piada seja, qualquer um que já tenha lido seriamente meus trabalhos sobre as taxas de lucros sabe que ela não só não caiu até zero, como não o fará em nenhum momento num futuro próximo – se é que isso irá ocorrer algum dia –, ainda que exista uma tendência secular de queda. E, existem boas razões para isso, como eu explico em meus trabalhos.
A primeira é que existem fatores contratendenciais à queda tendencial das taxas de lucros e essas circunstâncias contra-arrestantes são capazes de elevar essas taxas por períodos significativos, que duram até mesmo décadas, como o fizeram do começo dos anos 1980 até o fim do século XX. Outra, entre as principais razões, é que as depressões regulares no capitalismo levam a desvalorização do capital, com algumas empresas indo até mesmo à falência, queimando capitais fixos e dispensando força de trabalho. E esse fator atua para tornar possíveis aumentos gerais na lucratividade por vários anos. Ou seja, ainda que exista uma tendência de queda, ela coexiste com ciclos de lucratividade – mais uma vez, algo que expliquei em detalhes em “The Long Depression” (2016), por exemplo. Portanto, a taxa de lucros simplesmente não cai em linha reta até zero, e a piada do prof. Harvey às minhas custas não guarda, sob qualquer ponto de vista, nenhuma relação com a realidade.
É possível verificar no gráfico abaixo como esse processo complexo realmente ocorre. E, ainda, que mesmo na hipótese de que a taxa de lucro começasse a cair a partir de agora em uma linha reta, ainda assim, ela certamente não se aproximaria de zero antes de 2060 – e isso simplesmente não ocorrerá, haja em vistas as razões já mencionadas anteriormente. Basta notar que existem vários períodos nos quais as taxas de lucros sobem, e que esses momentos são, de modo geral, sucedâneos de grandes guerras ou, ainda, de longos períodos de depressão econômica.
Taxa de lucro mundial (%) utilizando 14 países-chave (1869-2012)
Fonte: MAITO, 2018.
Em sua apresentação no painel, prof. Harvey também afirmou ter me questionado pessoalmente sobre as razões pelas quais eu nunca tratava abertamente sobre a questão da massa de lucros em minhas análises. Aparentemente eu teria respondido simplesmente que “ah, eu falo a respeito, mas a questão é que isso realmente não importa”. Contudo, não é assim que eu me recordo dessa discussão. O debate teve lugar em uma sessão pública, um debate em plenário entre o prof. Harvey e eu, diante de mais de 200 pessoas, no Historical Materialism Conference de 2019, em Londres, e ocorreu logo após o prof. Harvey me enviar antecipadamente um artigo que segue exatamente os mesmos argumentos apresentados neste último, publicado na New Left Review. Penso que eu documentei de forma bastante detalhada aquele debate entre eu e David, algo que os leitores podem conferir em meu blog[6]. O leitor que estiver interessado, encontrará na postagem mencionada, o “questionamento pessoal” e minha resposta, que não foi exatamente aquela que o prof. Harvey procurou retratar em sua fala no painel de Nova York.
Como eu afirmo em meu post sobre aquele debate com o prof. Harvey, em 2019, “Na realidade, nós ‘rapazes e moças da queda da taxa de lucro’ estamos bastante cientes da duplicidade da lei marxiana (no que ela concerne tanto à taxa, quanto à massa de lucros)”. E, em minha apresentação para aquela plenária, eu sublinhei esse aspecto da lei, referenciando diversos trabalhos de teóricos da “taxa de lucros”, como Henryk Grossman, que argumentou sobre a duplicidade da lei de Marx para explicar justamente a dinâmica das crises no capitalismo. E, de fato, o principal argumento de Grossman é construído em torno da perspectiva de que eventualmente a queda da taxa de lucros levaria a uma redução no crescimento da massa de lucro até o ponto no qual não ocorreria mais punção de mais-valor suficiente para sustentar os aportes de capital na produção e, ao mesmo tempo, servir-se dele na reprodução capitalistas, o que levaria a momentos de quebras e queimas de capitais.
Além disso, procurei apresentar diversas evidências empíricas que demonstram a íntima conexão entre a taxa e a massa de lucros e como a relação entre esses dois fatores contribuem para a ocorrência das crises capitalistas. Por exemplo, tomo por base o trabalho de Jose Tapia (Drexel University) publicado no livro World in Crisis (2018), editado por mim e por Guglielmo Carchedi, que demonstra a estreita relação, nos balanços das corporações estadunidenses, entre as massas de lucros e seus investimentos, e como as alterações nesses fatores contribuem recorrentemente para crises. E, por fim, ainda apresentei para a plenária um modelo bastante cuidadoso que demonstrava a aplicação do caráter dúplice da lei de Marx aplicada aos dados da economia real nos Estados Unidos, para demonstrar suas conexões com minha tese a respeito da grande recessão.
Contudo, mais importante do que “quem disse o quê ou quando”, penso que o importante seria debatermos qual a melhor explicação para a causa das regulares e recorrentes crises no capitalismo? Nessa direção, destaco que, naquela postagem sobre o debate travado com David Harvey, concluo da seguinte maneira: “Penso que o objetivo do prof. Harvey (tanto naquele, como neste último artigo) é enfraquecer o papel da lei do lucro de Marx, bem como sua pertinência para a explicação das crises. Ao tratar do aspecto da duplicidade da lei, parece-me, David afirma que o aumento da massa de lucros, ou estoques de capital, ou o PIB são os problemas. E, portanto, o problema para o capitalismo não seria a insuficiência de lucros devido a queda de suas taxas, mas um excesso de mais-valor devido ao aumento da massa. Ou seja, o problema seria tão somente como é que nós vamos lidar ou absorver esse “excesso de mais-valor”? Isso se relaciona com a perspectiva de David sobre as crises capitalistas ocorrerem devido ao excesso de capital ou de lucro em relação a capacidade dos consumidores de os realizarem. E, de fato, o argumento de David é de que a confiança dos consumidores e os níveis desse consumo é que estariam na base da ocorrência das crises, e não as taxas ou o nível de lucros e investimentos. Em meu entendimento, como eu demonstrei anteriormente, as evidências não dão qualquer sustentação para a tese de Harvey (Cf. https://bit.ly/3n3JWzo).
Como meus leitores certamente sabem, nos debates passados com o prof. Harvey, ele já deixou evidente que rejeita a tese marxiana sobre o lucro como a base de uma teoria sobre as causas das crises, preferindo o que ele chama de multiplicidade de causas (como pode ser visto no link anterior). Sabem também como ele usualmente taxa aqueles que focalizam a lei marxiana do lucro para explicar as crises como autores e debatedores “monocausais”.
Acredito que ao longo do tempo, o prof. Harvey foi obrigado a admitir que as evidências empíricas sobre a queda tendencial das taxas de lucros são bastante convincentes. E, por causa disso, agora ele redirecionou o alvo de suas análises das taxas para as massas de lucros. Mas, sinceramente, essa mudança de alvo apenas levanta a bola para o nosso campo marcar um ponto a mais nesse debate. Afinal, a duplicidade da lei de Marx não é uma refutação da lei do lucro ou de sua potência como base para a explicação causal das crises capitalistas; muito pelo contrário, ela as conecta de forma integral. E o argumento sobre uma “multicausalidade” das crises (como subconsumo, “excesso de mais-valor a ser absorvido”, desproporções, fragilidade financeira etc.) apresenta-se diante de nós não apenas como uma tese nada convincente, mas como uma hipótese sob a qual não há absolutamente qualquer evidência.
Publicado originalmente em The Next Recession (em 25 de Agosto de 2021). Traduzido do inglês por Allan Kenji Seki.
Referências:
MARX, Karl. O Capital, Vol. III. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.
MAITO, Esteban Ezequiel. The tendency of the rate of profit to fall since the nineteenth century and a world rate of profit. In: Roberts, M. & Carchedi, G. World in Crisis: a global analysis of Marx’s law of profitability. Chicago: Haymarket, 2018.
ROBERTS, Michael. The Long Depression: Marxism and the Global Crisis of Capitalism. Chicago: Haymarket, 2016.
Roberts, M. & Carchedi, G. World in Crisis: a global analysis of Marx’s law of profitability. Chicago: Haymarket, 2018.
[1] O artigo final publicado pode ser encontrado em: https://bit.ly/3kMft6m (Acesso em: 02/09/2021). (Nota da Tradução/NdT).
[2] No original, Michael Roberts refere-se ao Livro I, porém trata-se evidentemente do capítulo 13 (“A Lei como tal”) do Livro III d’O Capital. As citações foram traduzidas, quando entre aspas, conforme estabelecido pela versão da Boitempo Editorial, traduzida por Rubens Enderle. (NdT).
[3] Como, por exemplo, pelo aumento do capital total adiantado frente a massa de mais-valor (NdT).
[4] Na versão original referia-se ao capítulo 13.
[5] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NVqPSF4IlfE (Acesso em: 02/09/20221).
[6] https://thenextrecession.wordpress.com/2019/11/11/hm1-marxs-double-edge-law (Acesso em: 03/09/20221)
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