Opinião
A filantropia paulista e os direitos bursáteis
Mais um espaço para a passagem da boiada do capital está aberto. A pandemia não para de rechear a tristeza com oportunidades de valorização e destruição de direitos sociais. A última foi a proposta do governo paulista, que aproveita do momento para em uma encenação de filantropia inserir trabalhadores da educação contra famílias de alunos e levar todos à contaminação geral pela COVID em busca da garantia de migalhas.
Faz isso tudo alterando um direito, o direito à alimentação e ao auxílio do Estado para que as pessoas não morram de fome. A alteração se dá pela condicionalidade. Segundo texto do projeto de lei de Dória:
Política social efetiva é aquela que promove ações diretas junto às populações que mais precisam, com condicionalidades, seja pelos programas de transferência de renda ou assistenciais de combate à pobreza, à desigualdade e, principalmente, que promovam novas oportunidades aos beneficiários. O Bolsa do Povo sintetiza esta missão como maior programa social da história de São Paulo.
Projeto de Lei nº 221, DE 2021, grifo nosso
O dito maior programa social da história de São Paulo, mescla ações antigas e propõe que os pais de alunos desempregados, preferencialmente mulheres¹, sejam auxiliares no distanciamento social nas escolas. Prevê que as mulheres provenientes de grupos de “trabalhadores integrantes da população desempregada residente no Estado” sejam convocadas para esse trabalho sem direitos trabalhistas “para colaboração no cumprimento de protocolos de prevenção à transmissão da COVID-19” (SÃO PAULO, 2021, s/p).
Passariam a ser contratadas as mães de alunos para atuarem dentro da escola, no sentido de supostamente prevenir o contágio da COVID-19, com o incremento da população que circularia pelas escolas. Os critérios de contratação para uma bolsa, cheia de contrapartidas, riscos e parca remuneração, seria o de estar desempregado e sem seguro-desemprego.
Temos aí a quebra da forma contratual de professores formados para atuar na educação pública paulista e do regimento das relações trabalhistas. Tudo isso em um tacanho aproveitamento da situação pandêmica e da miséria que aflige a população.
Interessante perceber que o projeto altera a nomenclatura do “Programa Emergencial de Auxílio Desemprego”, que passa a denominar-se “Programa Bolsa-Trabalho” (SÃO PAULO, 2021). Veja bem, esse projeto de bolsificação da vida, de transformação de direitos em negociações bursáteis da bolsa de valores, toma ares vampirescos insidiosos na usurpação de direitos conjugados na estratégia de dividir para dominar.
Lembro que, conforme o projeto de lei: “II – o valor da bolsa será, no mínimo de R$ 450,00 (quatrocentos e cinquenta reais) e, no máximo, de 1 (um) salário mínimo nacional; III – a jornada de atividade no programa poderá ser fixada de 4 (quatro) a 8 (oito) horas por dia, 5 (cinco) dias por semana;” (SÃO PAULO, 2021).
Tal proposta ressalta aos trabalhadores desempregados que eles podem até ter o direito a existir nessa sociedade capitalista, mas não de desfrutar dessa existência. A leitura da proposta alardeada pela mídia patronal como contraposta ao bolsonarismo², mostra outra face da mesma moeda negacionista. A construção argumentativa é elucidativa de como essas políticas assistenciais são realizadas para que, no limite, as pessoas não morram de fome e funcionem quase como uma punição ao fato do azar de terem nascidos ou estarem momentaneamente como parte dos desalentados e desempregados.
Um século e meio atrás, ao descrever a situação da classe trabalhadora inglesa, Engels (2010, p. 317, grifo do autor) forneceu alguns parâmetros para pensar como a burguesia e seus teóricos, políticos, juristas de aluguel compreendem o tratamento a ser dispensado a essa classe de excedentes. Criticou a forma como “Malthus faz da pobreza, ou mais exatamente do desemprego que se manifesta nos “excedentes”, um crime que a sociedade deve punir com a morte pela fome”. Diferente desse pensamento na letra de lei não se previa o assassinato pela fome.
Eis por que sua prédica é outra: Vocês, os pobres, têm o direito de existir, mas apenas de existir; não têm o direito de procriar, assim como não têm o direito de existir em condições humanas. Vocês constituem uma praga e, se não podemos eliminá-los como às outras pragas, devem sentir-se como tal, devem saber que serão controlados e impedidos de criar novos supérfluos, seja diretamente, seja induzindo-os à preguiça e ao desemprego. Vocês vão viver, mas apenas como exemplo para advertir a todo aquele que possa vir a ter ocasião de tornar-se supérfluo.
F. Engels em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010.
Poderíamos pensar um paralelo entre a legislação inglesa daquele período com as condicionalidades paulistas de Dória. Naqueles tempos o trabalho era exigido como contrapartida, mas um trabalho que nenhuma pessoa realizaria, pelo retorno financeiro oferecido, em condições normais. Engels (2010 p. 318) relatou que:
Com o objetivo de que o recurso à Caixa dos Pobres só seja feito em último caso e de que os esforços de cada indivíduo sejam levados ao extremo antes de procurá-la, a casa de trabalho foi pensada para constituir o espaço mais repugnante que o talento refinado de um malthusiano pôde conceber. A alimentação é pior que a de um operário mal pago, enquanto o trabalho é mais penoso – caso contrário, os desempregados prefeririam a estada na casa à miserável existência.
F. Engels em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010.
Os negacionismos são pensados. Negam a sobrevivência em condições dignas da classe trabalhadora, mas têm uma lógica capitalista de pensar a forma do modo como os capitalistas e seus sicofantas desejam que os trabalhadores produzam e reproduzam, ou percam, sua vida sob a subsunção do trabalho ao capital.
por Artur Gomes de Souza, doutorando em educação pela UFRJ, para o UàE.
¹ De acordo com o texto: “O pagamento dos benefícios previstos nesta lei será feito preferencialmente à mulher, na forma do regulamento” (SÃO PAULO, 2021).
² De acordo com a proposta apresentada para a mídia “serão contratados 20 mil pais e mães de alunos da escola estaduais para colaborar no retorno às aulas” (RODRIGUES, 2021). Isso em meio ao recorde de mortes por COVID-19 no estado paulista e no país como um todo
REFERÊNCIAS
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010.
RODRIGUES, Artur. Doria unifica programas sociais e cria bolsa com repasses de até R$ 500 em SP. Folha de São Paulo. 07/04/2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/04/doria-unifica-programas-sociais-e-cria-bolsa-com-repasses-de-ate-r-500-em-sp.shtml. Acesso em: 9 abril 2021.
SÃO PAULO. Projeto de Lei nº 221, DE 2021. Mensagem A-nº 062/2021 do Senhor Governador do Estado São Paulo, 07 de abril de 2021. Disponível em: https://www.imprensaoficial.com.br/DO/BuscaDO2001Documento_11_4.aspx?link=%2f2021%2flegislativo%2fabril%2f08%2fpag_0005_4991ea4cb4db6689d89cd370fe23bee9.pdf&pagina=5&data=08/04/2021&caderno=Legislativo&paginaordenacao=100005. Acesso em: 9 abril de 2021.
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