Opinião
A epidemia chega na mesa do jantar
As exportações têm significados muito concretos na pobreza do jantar da classe trabalhadora.
Ana Júlia e Marcos Meira – Redação UàE – 08/09/2020
Os brasileiros que passam pelos mercados das maiores cidades brasileiras têm se deparado nos últimos meses com seguidos aumentos nos preços. Apesar disso, o governo afirma que os níveis de inflação estariam baixos e que ainda existiria bastante espaço para que possa ser controlada pela política monetária. Contudo, a situação preocupa as famílias visto que estamos num cenário marcado por cortes salariais e desemprego, que atingiu mais da metade de todas as famílias dos trabalhadores no país.
É justamente nesse cenário de crise que as famílias vêm deixando de consumir e alterando significativamente seus hábitos de consumo. Esse dilema é vivido, em maior ou menor grau, pela maior parte das famílias desde 2014/2015, quandos os efeitos deste ciclo de crise do capital começou a se fazer sentir com maior força e tem sido muito agravado pela crise sanitária.
Com a pandemia, existiu inclusive o temor do desabastecimento – o que foi fomentado pelo próprio Presidente da República em diversos pronunciamentos. Mas as famílias adotaram inúmeras estratégias de adaptação diante dessa situação amarga e seguiram consumindo, principalmente alimentos.
A inflação sob controle, como afirma o governo Bolsonaro, esconde justamente a perda de parte da capacidade de consumo tanto das famílias e dos próprios capitais. Na medida em que o consumo foi reduzido aos níveis mais baixos, as famílias buscaram se adaptar ao novo cenário através de duros regimes de cortes no consumo de todos as as mercadorias passíveis de serem deixadas de lado.
Por outro lado, os capitais que produzem bens intermediários deixaram também de consumir e o Brasil acumula índices negativos de desindustrialização e de ociosidade das fábricas. Esses efeitos só não são mais sentidos, pois a crise sanitária colateralmente amortece a busca por empregos e dissipa os efeitos das perdas industriais no conjunto da economia. Isso permite encobrir os dados da catástrofe econômica brasileira atrás dos índices de crescimento, por exemplo, das exportações.
Mas os efeitos práticos são sentidos nas gôndolas dos supermercados. Desde o final de 2019, o Brasil sofre duramente com a elevação do preço do dólar no mercado mundial. E o governo Bolsonaro não conseguiu responder a essa elevação com as políticas monetárias fundamentalistas defendidas por seu preposto, Paulo Guedes (Ministro da Economia). Em razão disso, desde o final do ano passado, a inflação já estava sob forte pressão e foi a pandemia que ocasionou a derrubada dos preços durante os meses de fevereiro até junho de 2020.
A análise desagregada, contudo, mostra que mesmo no período de queda da inflação, durante a pandemia do COVID-19, o preço dos principais alimentos da cesta básica como proteínas (carnes bovinas, peixe etc) e carboidratos (arroz, feijão, batata, cebola, açúcar) elevou-se consideravelmente. Segundo o Dieese, em 2020, o preço do conjunto de alimentos aumentou 6,60% e o acumulado dos últimos 12 meses já chega ao patamar de 12,15%.
O que explicaria, então, essas crescentes altas no preço dos alimentos?
No início de agosto, Paulo Guedes (Ministro da Economia) anunciou que o impacto da crise nas exportações foi quase zero por causa do agronegócio. Os dados compilados pela Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) confirmar isso: as exportações brasileiras de carne suína somaram 100,4 mil toneladas em julho, 47,9% mais que no mesmo mês de 2019. A receita com os embarques cresceu 37,3%, para US$ 203,1 milhões.
Isso quer dizer que nos sete primeiros meses do ano, o volume das exportações de carne suína cresceu 38,8%, alcançando 579,9 mil toneladas e o valor das vendas chegou a US$ 1,279 bilhão, com incremento de quase 50%. Além disso, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), as vendas do comércio no país subiram 8% em junho, justamente no período em que as medidas de isolamento social passaram a ser cada vez mais flexibilizadas pelos governos.
Assim, embora alguns setores, como o de bens de consumo intermediário tenham tido resultados negativos, essas estatísticas são ocultadas pelas exportações e pela entrada de dólares dos setores agroexportadores. Em março, por exemplo, a queda do setor de serviços chegou a 6,9%, enquanto a indústria recuou 9,2% e o comércio 2,8%, segundo o IBGE. Logo depois disso, esses capitais passaram a produzir estoques para as grandes redes de supermercados e atacadistas.
Como resultado, os principais setores da produção brasileira se voltaram para os mercados externos. As elevações no dólar e no euro favorecem as exportações, pois os produtos brasileiros são ofertados a preços mais baixos para os compradores na Europa, Estados Unidos ou Ásia. Parte desse setores são aqueles que produzem grãos (soja, milho, feijão, arroz) e que incidem diretamente na cesta básica (arroz, feijão, trigo) ou indiretamente (soja, milho) porque são a base da alimentação animal ( bovina, suína, frango).
A burguesia interna, descomprometida com a classe trabalhadora brasileira, prioriza únicamente suas receitas líquidas, em detrimento da capacidade de consumo da maioria absoluta da população. Para ela, a captação de mercados em dólar e euro é extremamente vantajosa e a crise social, ao menos no curto prazo, lhe assemelha a vantagens muito significativas. É por isso que a esquerda defende historicamente que o Estado deveria ter controle sobre a produção de alimentos e outros produtos estratégicos de consumo nacionais: para determinar as áreas de plantio e a prioridade absoluta ao abastecimento interno das famílias.
Do contrário é como se você habitasse um condomínio no qual, durante uma crise de falta de água no seu bairro, decide que é melhor vender água para os vizinhos que estejam dispostos a pagar mais caro por ela e corte o abastecimento dos apartamentos.
Justamente nesse momento em que a alimentação e o cuidado com a saúde constituem um fator importante na luta contra a crise sanitária, os grandes capitalistas, como sempre o fazem em uma sociedade dividida por classes, força o país a voltar seus esforços para a exportação, na tentativa de lucrar na crise econômica, mesmo que uma parcela significativa da população viva em condições cada vez piores.
Todos os países capitalistas centrais (Estados Unidos e Europa) têm políticas duríssimas para controlar o preço da cesta básica. Inclusive, nas principais potências européias, o Estado pode determinar a desapropriação da terra daqueles produtores que utilizem as áreas de plantio de forma irregular com a finalidade de especular com o preço dos principais produtos de consumo dos trabalhadores. Não se trata, por certo, de benevolência. Nesses países o consumo da força de trabalho está diretamente relacionada com o preço da mesma, ou seja, com as pressões salariais e isso afeta os interesses diretos das maiores indústrias do mundo.
Em países dependentes como o Brasil, a relação entre o consumo da força de trabalho, o mercado interno, e a produção industrial é diferente. Parcelas significativas dos setores produtivos é orientada para as exportações e dissocia suas políticas salariais das condições reais de consumo de seus trabalhadores dispondo de extensivas massas de força de trabalho pauperizadas. Nessas condições, os trabalhadores recebem, em geral, menos do que aquilo que seria necessário para repor suas próprias forças de trabalho e dependem de longos períodos de subconsumo, auxílios governamentais e crédito para reproduzir suas condições de vida.
A prioridade do lucro de exportações é tão evidente que no Brasil não existe nenhuma política séria de compra e estoque da produção de carboidratos, maior componente da alimentação nacional, ou de proteínas armazenáveis, seja em silos ou armazéns públicos. Esse tipo de política poderia permitir, mesmo nos marcos de uma sociedade capitalista, que o Estado acondicionasse esses produtos estratégicos no momento em que os preços estão em baixa e os liberasse quando escassos e os preços se elevam no mercado interno.
Além disso, o Brasil precisa de uma reforma agrária substantiva. Essa reforma agrária não é apenas a entrega de parcelas de terras improdutivas às famílias de trabalhadores sem terras, ela deve ir além disso, tendo um direcionamento global da sociedade brasileira sobre as decisões estratégicas de prioridades de produção agrária. Essa reforma radical não encontrará jamais aceitação entre a sociedade burguesa, pois dependerá de uma imposição do conjunto da sociedade sobre a estrutura fundiária; algo que só pode ser feito a partir de uma conjugação de forças de todos os trabalhadores.
Ainda que nada disso fosse concretizado, se o Brasil fosse um país de verdade e tivesse um governo ao menos à altura do sapato de seu povo, a primeira medida de qualquer governo preocupado com os brasileiros seria a de sobretaxar as exportações de alimentos e os especuladores de câmbio. Portanto, há saídas de largo alcance sobre nosso destino societário, mas existem ainda aquelas de curto prazo e que qualquer governo pode ser obrigado a realizar.
Enquanto a classe trabalhadora não virar o jogo, estará condenada a seguir com seus carrinhos vazios pelos corredores dos supermercados nos períodos de crises. As mudanças são notáveis, basta uma rápida experiência pelos açougues para notar a deterioração da qualidade da carne. Seja pelas fraudes mais evidentes, como é o caso bem conhecido das picanhas brasileiras de 3kg; pela evidente redução das camadas gordas, o que indica que o animal foi mal alimentado, adoeceu ou foi abatido jovem demais; ou pelos preços extremamente elevados daquilo que é vendido como se fosse carne de primeira (não existe carne de primeira ou de segunda, o que existe é animal saudável e bem alimentado e animais doentes e mal nutridos).
Pelos demais corredores a situação não é diferente, por toda a parte as marcas consideradas de primeira qualidade vão cedendo espaço para uma infinidade de outras marcas até então desconhecidas. Isso é sempre o indicador de duas hipóteses: (1) a rede de supermercados está diversificando os produtores para oferecer produtos de menor preço ou, o caso mais frequente, (2) as grandes indústrias estão priorizando os melhores grãos (feijão, arroz, soja, milho, ervilha) para a exportação e, cientes da má qualidade do produto ofertado, estampam outras marcas nos pacotes para evitar a degradação dos seus rótulos premium.
Todos esses dados que os trabalhadores vêem estampar as telas dos telejornais e que lhes são informados como se não lhes dissessem respeito: exportações, dólar, euro, IPCA, IGP-M; tem significados muito concretos na pobreza do jantar que o brasileiro médio come enquanto os assiste.
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