Opinião
A centralidade das lutas do transporte na organização da classe trabalhadora em Florianópolis
A luta contra o aumento e a urgência da tarifa zero
Amanda Alexandroni e Jonathan Faria*
Em 27/12 o Prefeito de Florianópolis, Topázio Neto (PSD) aumentou o preço das passagens de R$ 4,40 para R$ 6 reais. A decisão pela subida de 33% a partir de 1˚ de janeiro de 2023 foi feita pouco tempo depois da deliberação de que os ônibus teriam tarifa zero aos finais de semana dos meses de dezembro e janeiro – ou seja, durante a alta temporada -, expondo as contradições da organização dessa cidade na qual o peso dos capitais ligados ao turismo exercem forte influência. Com essas questões em vista, este texto pretende resgatar a memória dos movimentos ligados à luta pela redução da tarifa e pela tarifa zero, debater o impacto do transporte urbano no cotidiano dos trabalhadores e, ainda, discutir de que forma a mobilidade urbana organiza e pode organizar as cidades.
Florianópolis é uma cidade que já congregou diversas lutas importantes a nível nacional acerca da tarifa zero e da redução da tarifa para o passe de ônibus. Iniciando em 2004 em Florianópolis, o movimento Revolta da Catraca foi às ruas para lutar contra o aumento do preço da passagem de ônibus. Em 2005 [1], após novo anúncio do aumento da passagem de ônibus, estudantes e trabalhadores impulsionaram diversas manifestações pela cidade de Florianópolis, enfrentando a política do então prefeito Dário Berger (PSB) e as forças repressivas do Estado nas ruas. As manifestações grandiosas lidavam cotidianamente com as ações repressivas da Polícia Militar, que tentava oprimir o movimento pelo uso da força, com o uso de balas de borracha, gás lacrimogêneo, cassetetes, armas de choque e prisões. Apesar da coerção constante e aberta, o movimento foi vitorioso e barrou o aumento da tarifa. A Revolta da Catraca foi um momento importante que inspirou lutas contra o preço abusivo do transporte em outras partes do país, como em São Paulo.
Alguns anos depois, em 2010 [2], novas manifestações com essa pauta eclodiram pela cidade. A população estava indignada com o aumento das passagens e com a baixa qualidade do serviço. Novamente os estudantes junto aos trabalhadores da cidade foram às ruas para exigir a diminuição da tarifa. Os rumos da manifestação eram decididos no próprio movimento, o que intensificava os conflitos com a PM. Muitos estudantes foram presos e a polícia chegou a invadir a Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC) para reprimir os manifestantes. Nessa época, as entidades estudantis, principalmente o Diretório Central dos Estudantes da UFSC (DCE-UFSC) e da UDESC (DCE-UDESC), tinham um papel central na organização das manifestações. Grande parte da população que não participava diretamente dos atos apoiava o movimento e condenava a violência cometida pelas forças do Estado. Infelizmente, apesar dos atos massivos, em 2010 o aumento não foi barrado.
De lá pra cá, muitas coisas mudaram na organização do movimento, seja pela articulação do Estado para impedir a radicalização das lutas, seja pelos conflitos no interior das frentes e, ainda, pela reorganização da esquerda desde as jornadas de junho de 2013. Atualmente, ficando atrás apenas de Caxias do Sul (RS), Florianópolis tem a segunda passagem mais cara do Brasil. No final de janeiro, foi convocado um ato contra o aumento das passagens e organizado um abaixo-assinado. Nos últimos anos, o anúncio do reajuste no preço das passagens tem sido feito no final do ano, durante o período do recesso acadêmico, o que coloca uma série de barreiras para que os estudantes possam constituir-se em peso nesta pauta. Além disso, o DCE-UFSC e o DCE-UDESC não têm cumprido um papel expressivo na articulação dessa luta.
O preço da passagem de Florianópolis, para uma pessoa que se transporta duas vezes ao dia durante cinco vezes na semana, representa 18,1% do salário mínimo. Isso significa que quase um quinto de um salário pode ficar comprometido apenas em função de deslocamentos para o trabalho cotidiano. Além disso, segundo uma reportagem recente da Revista Piauí, em grandes capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, o tempo médio de viagem chega a ser mais de uma hora, o que, em um ano, significa 11 a 12 dias perdidos dentro do transporte público. Em Recife, o tempo de espera para o ônibus é em média, 27 minutos, que são traduzidos em 5 dias perdidos em um ano apenas na espera. Dados como esse revelam como o transporte público impacta a vida dos brasileiros e estão diretamente relacionados às contradições da cidade.
O poder econômico e político da burguesia é capaz de determinar grande parte da dinâmica das cidades, pois o planejamento e estrutura dos espaços dependem de uma série de investimentos em infraestrutura, seja pública ou privada. Se haverá ou não circulação de ônibus efetivas em certas partes da cidade, se há creches, restaurantes, postos de saúde, supermercados, praças e uma série de outras questões que parecem fortuitas a um espaço são em grande parte determinadas pelas classes dominantes .Em Florianópolis, por exemplo, a recente valorização de imóveis do bairro Campeche tem pressionado a realização de obras para melhorar a estrutura do bairro, com mais comércios e vias de acesso. Entretanto, o transporte público na região é extremamente escasso. Essas condições refletem no perfil de quem pode morar nesta região.
Após as Jornadas de Junho de 2013, o transporte como um direito social foi inserido no artigo 6˚ da Constituição, por meio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 90/2011. Ainda assim, esse é um dos poucos serviços em que a arrecadação é feita diretamente na hora de utilização do serviço, através da tarifa do transporte. Por enquanto a PEC 90 se apresenta apenas como uma falsa conquista das lutas deste período, pois a emenda foi aprovada em novembro de 2015 e nesses quase 8 anos nada de concreto foi feito. A aprovação desta medida também não garante que o transporte público assegure o livre acesso à população na cidade.
Com a desorganização da nossa classe principalmente a partir de 2013 e o enfraquecimento dos movimentos sociais que protagonizavam essas lutas, como por exemplo o Movimento Passe Livre, os termos de uma proposta de transporte via tarifa zero vêm se deslocado para um lugar que distancia o poder de organização da nossa classe, restringindo a tomada das decisões nas mãos de técnicos e garantindo majoritariamente os interesses da classe dominante em detrimento aos dos trabalhadores.
O transporte, assim como os outros serviços essenciais, deveria ter tributação indireta. Ou seja, o serviço não deveria ser pago dentro do ônibus apenas pelo usuário do transporte, mas sim, dividido por toda a sociedade que se beneficia direta ou indiretamente deste serviço. Ainda assim, isso não significaria que o sistema de mobilidade assegurasse o direito da população à cidade.
A tarifa zero no transporte público poderia ser algo factível mesmo dentro dos marcos do capital. Aliás, a cobrança indireta da tarifa, tem efeitos positivos na economia local, pois quanto mais pessoas circulam na cidade, mais o comércio se beneficia. O aumento da circulação das pessoas pelo transporte público tem outros impactos positivos, como a diminuição do trânsito, da manutenção das vias, menor poluição, e maior segurança – pois o aumento de pessoas circulando na cidade geralmente é seguido por uma maior segurança nas vias.
Entretanto, o capital exerce seu poder não apenas economicamente. O sistema de mobilidade está profundamente estruturado para atender o capital e não aos trabalhadores. Podemos ver isso nos horários e rotas de cada linha. Estes estão organizados para atender apenas a demanda de locomoção da força de trabalho (ativa ou em formação) para seu local de trabalho e para seus locais de formação (escolas e universidades). As demais dimensões da nossa vida não passam por esse sistema. Por exemplo, as rotas para garantir uma circulação nos finais de semana ou fora do horário comercial são escassas; assim como os horários da madrugada, dificultando por exemplo o acesso a um hospital ou outros serviços públicos e até mesmo ao entretenimento da cidade fora do horário comercial.
A falta de horários e rotas tem endereço de classe, raça e gênero. Ela prejudica os mais pobres e a população preta, pois são principalmente nos lugares em que estes setores residem que a oferta deste serviço é pior. Além disso, a falta de horário e ausência de rotas aumentam a insegurança, pois a espera no ponto de ônibus por um longo período de tempo ou o deslocamento entre este e o local de destino são acompanhados podem representar uma exposição às violências da cidade.
É fundamental que o transporte público atenda as necessidades da classe trabalhadora. Para isso, é urgente tirar o controle deste sistema das mãos dos empresários e de seus representantes. Os rumos e organização deste sistema deveriam ser decididos e planejados a partir da perspectiva das necessidades da classe trabalhadora, que circulam pela cidade e vivem as contradições da desigualdade econômica em cada ponto de ônibus.
O direito à cidade é uma pauta fundamental atrelada a esta, e não deve ser apenas a possibilidade de acessar os serviços essenciais tutelados pelo direito burguês. Reivindicar o direito à cidade é defender que este espaço garanta os nossos interesses de viver da melhor forma possível de forma coletiva e solidária, com acesso à educação, cultura, saúde e assistência.
Neste sentido, a história de lutas e o protagonismo que Florianópolis teve em diversos momentos foi fundamental para o avanço desta pauta a nível nacional. Nas duas últimas décadas, esta foi uma das principais pautas que fortaleceu e aglutinou nossa classe na cidade. Gerações de militantes surgiram nas lutas contra o aumento da tarifa. Essa experiência coletiva mostrou para centenas destas pessoas que a luta não era apenas um desejo, mas uma necessidade para rompermos com a barbárie burguesa que atravessa todos os campos da nossa vida.
Do nosso lado, as contradições deste sistema jogam a nosso favor. Por ser um serviço que está fortemente ligado ao cotidiano das pessoas, é um espaço de difícil acesso a discursos ideológicos, ou seja, por mais que a mídia burguesa e os empresários dos transportes tentem justificar o aumento e a precariedade do sistema, as justificativas não convencem grande parte da população.
O tempo e o dinheiro gastos em um transporte de péssima qualidade causam forte indignação. Transformar essa insatisfação individual em mobilização da classe é uma tarefa urgente. Precisamos recolocar na ordem do dia qual cidade queremos, como colocar os serviços à nossa disposição, pensar os espaços públicos, a circulação pela cidade e o que é necessário para que a classe que tudo produz possa viver de forma mais justa.
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