Opinião
A Esperança está no Cuidado (Parte 1)
Uma Reflexão sobre Redes Sociais, Guerrilhas e Populismo. Por João Gabriel Almeida
Em artigo traduzido para a EFoP, especialmente para o Çirculação da Balburdia, João Gabriel Almeida1 analisa a luta no campo da comunicação e educação popular. João é pesquisador do Instituto de Pensamento e Cultura da América Latina, IPECAL. Doutorando em Comunicação pela Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona. Atuou como professor de jornalismo para os ex-guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) durante o processo de acordos de paz. Confira a primeira parte, de duas, de seu artigo:
Introdução: Uma pequena selfie do momento histórico
Nayib Bukele é o primeiro presidente millenial. Suas manifestações iniciais de democracia direta via Twitter e sua subseqüente piada na ONU com uma selfie em seu discurso terminaram em uma intervenção militar no Congresso salvadorenho, uma performance digna das ditaduras militares do Cone Sul. Em artigo publicado recentemente (Almeida, Pimentel, 2019), tentei, com a generosa ajuda do rigoroso jornalismo de Matheus Lobo Pismel, provocar aqueles que definiram um novo sujeito político através da categoria “cidadania” com a expressão “novas cidadanias conservadoras”. O pano de fundo desse debate é um recorte do tempo histórico. Eu venho da utopia das redes sociais como catalisador da democracia. Fui um dos participantes das Jornadas de Junho de 2013 no Brasil e um dos quais essa experiência se tornou uma estrutura para definir a vida.
Folhas e folhas foram publicadas, além de terabytes de armazenamento em torno dessa nova juventude em redes, rizomas, conectados e preparados para disputar o mundo a partir das redes sociais digitais. Como todo produto do Capitalismo de Plataforma (Srnicek, 2019), criamos a marca de amor (Jenkins, 2006), criamos representantes comerciais para esse novo produto no mercado da democracia liberal. Assim como os jogos de celular contratam Jennifer López ou a família Kardashian para transferir sua fama e monetizá-la, foi criada uma rede de superestrelas que, como Pablo Iglesias, pareciam ensinar a gerar “tweets”, idéias sínteses, boas metáforas, uma máquina de propaganda digital, para poder vencer. Podemos não ganhou, teve que trabalhar de cabeça para baixa no governo junto com o PSOE que ele jurara eliminar, após uma considerável perda de parlamentares. Os vencedores da interface, parafraseando o texto ainda atual de Walter Benjamin, A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica (2012), foram outros. Trump, Bukele, Bolsonaro, Beppe Grillo, entre outros líderes conservadores. No final, a arte teve mais sucesso do que os cientistas políticos, algo bastante comum na verdade, e o mundo parece estar se enchendo de Waldos2 , um personagem criado por Charlton Brooker para a série Black Mirror em 2013.
Os populistas, aqueles que acreditávamos em chegar ao poder a partir da teoria de Laclau, fracassamos e temos que fazer uma escolha. Podemos tentar salvar o populismo ou aceitar a natureza radical do fracasso e pensar sobre onde ele reside. Penso que os ensinamentos de Mujeres Creando3 na Bolívia são os que dão as melhores pistas sobre o que fazer. Estávamos em constante busca do Outro para lutar e em negação dele escolher com quem construir trincheiras. Esse é o fundamento do populismo de Laclau (2012), mas também o legado do jargão militar no leninismo e de quase toda a tradição política. O ato insurgente de Maria Galindo em dizer que não estava interessada na guerra masculina e que o desafio não era mudar um macho pelo outro4, talvez seja o horizonte político do momento histórico de Nossa América.
Pensando nisso, o objetivo deste texto é contribuir para esse debate por meio de avanços na pesquisa de doutorado que realizo, na qual procuro estabelecer a categoria de Educação Popular Transmídia. Para isso, dividirei o ensaio em três partes. O primeiro nos coloca no problema de que estamos falando. O segundo nos fala sobre o desamparo em que caímos, e o último descreve os princípios da esperança.
O filtro faz parte da imagem. A tecnogênese do problema:
Os trabalhos de Bruno Latour (2017), Katherine Hayle (2012), Tomás Sánchez-Criado (2008), entre outros, trazem consigo um esforço para categorizar o papel que a técnica e a tecnologia desempenham na vida humana. Desde seus campos específicos, eles coincidem em um ponto: a técnica não é algo alheio aos seres humanos, é parte dele. A partir do momento em que usamos a primeira pedra, ela alterou nossa maneira de andar, já que a necessidade de usar as mãos em outras atividades favoreceu que fôssemos bípedes. Como Florentino Blanco Trejo explicou poeticamente em seu prólogo ao livro Tecnogénesis, a construção técnica das ecologias humanas (2008), corpo e prótese, humanos e não humanos, eles se criam e se alteram desde o início da história da humanidade. Um exemplo que me ajuda a entender isso, e talvez à intelectualidade que em grande parte deve sofrer de miopia como eu, são os óculos.
Aqueles de nós que usam óculos e têm um grau aceitável de distorção da retina não somos totalmente nós antes de usá-los todos os dias. Eles já são uma prótese do nosso corpo, que não é apenas uma extensão, mas parte dela: assim como uma pessoa que tem um membro amputado pode ter a sensação da presença fantasmagórica desse membro, nós ajustamos nossos óculos no nariz como idiotas, mesmo não os tendo postos. Aqueles de nós que não têm restrições estéticas e os usam o tempo todo já se sentem relativamente incapazes sem eles. Para alguns, parece um pouco “primitivo” e tortuoso carregá-los o tempo todo e, por esse motivo, tendo o dinheiro necessário, incorporam lentes em sua própria retina para viver com eles integrados em seu corpo. Independentemente do grau de acoplamento, a maneira como percebemos o mundo passa literalmente por uma entidade não humana, sem a qual muitos de nós que passamos pela Universidade não poderíamos alcançar nossas taxas de leitura atuais.
Se transferirmos essa lógica para a Internet, poderemos definir algumas premissas. No fundo, a Internet é filha de um problema básico em nossas sociedades, relacionado à maneira como sistematizamos e organizamos as informações. Este tem sido um motivador para muitas histórias na humanidade, incluindo Em nome da rosa (1985). Como registrar, armazenar, manter e transmitir as informações? Essa é a questão subjacente, que obviamente tem sido um assunto muito caro para os militares. A Internet nada mais é do que a premissa de que conseguimos armazenar e transmitir com maior eficiência se convertermos as informações em impulsos elétricos, aplicamos lógica matemática ao seu arranjo e criamos sistemas para que esses impulsos elétricos “naveguem” entre diferentes dispositivos. Assim, em vez dos monges reclusos traduzirem e organizarem essas informações, criamos máquinas que podem fazer o trabalho mecânico que eles fizeram. O que eles chamam de “inteligência artificial” nada mais é do que o uso de condicionais lógicos (em inglês for, if, else) para acessar bancos de dados diferentes e perceber recorrências que podem prever quais informações são mais relevantes para o contexto específico do que estamos procurando.
Lembro-me de que, na minha juventude, quando ainda não tinha um uso tão intensivo do computador e do telefone celular, ia a dois sebos, muitos daqueles que começamos a ter um certo carinho por livros costumávamos gostar deles que das livrarias. Alguns por um fetiche, respeitável, com o cheiro de livros antigos. Como paciente de rinite alérgica, esse não era o meu caso. Eu costumava ir aos sebos porque seus donos eram grandes leitores, eles já me conheciam e foi por isso que me salvavam do risco de acabar lendo um livro consideravelmente chato. Uma das lojas era um pouco mais de “nicho”, mas a outra vendia dos mais comerciais às excentricidades que não eram encontradas em nenhum outro lugar. Independentemente da generalidade do acervo, essa certa personalização me facilitou a andar pelas prateleiras, a ouvir histórias e a aprender sobre livros como Nada de Novo no Front (1929), até hoje um dos meus livros favoritos e que eu nunca teria lido sem essa ajuda. O mesmo aconteceu comigo na universidade. Sejamos honestos, o “impacto” de um autor há dez anos tinha apenas uma métrica: as recomendações e indicações de amigos e professores. Netflix, Spotify, Amazon, Google Scholar, nada mais são que a transferência dessas indicações para não-humanos. Quanto mais você usa as plataformas, mais elas o conhecerão e fornecerão produtos semelhantes ao seu gosto.
O problema é que, às vezes, esquecemos o verdadeiro objetivo do vendedor de livros e dessas plataformas, que é vender-nos algo. Esse foi o erro recorrente daqueles que pensaram em comunicação política pela Internet. Melhor do que o dono da livraria, a Amazon foi a primeira a entender que a vantagem de armazenar bytes em vez de papel é que uma faixa do mercado que não era lucrativa passou a ser a partir da microssegmentação do mercado. Isso foi chamado de teoria da cauda longa5. Em suma, por razões radicalmente materiais, as empresas precisavam vender o que quer que fosse “sucesso de público”. A desaparecida BlockBuster não podia se dar ao luxo de ter uma coleção de filmes cult de um pequeno grupo de pessoas, pois seria uma estante a menos para o filme do super-herói do momento. A possibilidade de armazenar a coleção em computadores permitiu diversificar os produtos e aumentar os lucros com a venda de produtos para “nichos” específicos no mercado.
Gráfico de cauda longa
Se pensarmos isso desde tecnogênese e conectá-lo à política, podemos dizer que o que Nancy Fraser chama de neoliberalismo progressista6 surge nessa conjunção. O mercado não discrimina ideologias e crenças desde que sejam conversíveis em produtos comercializáveis. Plataformas de publicidade como Facebook, YouTube e Google começaram a identificar o crescente mercado de consumidores que não são o clássico gringo branco e a garantir que esses consumidores tivessem um lugar no capitalismo. As indústrias de alimentos e entretenimento foram as primeiras a entender que uma mistura de visões de mundo não ocidentais, ativismo social e ecologia poderiam ser muito lucrativas. A cerimônia do Oscar de 2020 provou essa ideia, dando às principais estátuas ao defensor do veganismo, oriental e defensor de um capitalismo mais justo Bong Joon-Ho. Com a mágica dos algoritmos, os anunciantes criaram bolhas de consumo que fizeram surgir pequenos espaços de diversidade e inclusão desde uma perspectiva comercial. Isso também permitiu o extrativismo gourmet, ou seja, iniciativas produtivas na América Latina para alimentar esses consumidores, localizados nos grandes centros urbanos ou nos EUA e na Europa. Lembro-me de uma conversa que tive com as líderes da cooperativa de laticínios Salinas, na qual elas confessaram que, enquanto produziam produtos orgânicos para o mercado europeu, suas trabalhadoras tinham que consumir refrigerantes e junk food.
Assim como minha visão de mundo na juventude passou pela curadoria dos proprietários de livros usados, as plataformas de publicidade, que retêm muito mais informações sobre mim do que meu amigo dono de sebo, estabelecem os critérios de nossa percepção do mundo como “iguais”. Isso foi confortável até percebermos que essas mesmas plataformas também sugeriam a uma população ainda maior a “cabeça curta”, com seus preconceitos e práticas sociais. No final, encantados com os números e o alcance da lógica da publicidade, não percebemos que estávamos alcançando um público que antes não tinha tanto espaço no mercado, mas não estávamos dialogando com grande parte da sociedade. O problema não é que meu amigo tenha sido substituído por algumas lógicas matemáticas; o problema é que acreditávamos que todos que visitavam aquela enorme loja virtual compravam o mesmo que nós. O problema é que não vivíamos mais com os mesmos dez compradores ocasionais, mas estávamos com milhares de pessoas e nossa capacidade cognitiva não era capaz de discernir o que os números de reprodução significavam em quantidades de milhares. Nós éramos da época do CD, em que com 40.000 vendas no Brasil você já recebia o disco de ouro. As métricas alteraram nossa percepção do tempo, implicaram a ideia de que, se estávamos crescendo, era porque estávamos fazendo algo corretamente, e numa arrogância colonial de “descobridores de um novo mundo”, criamos um modelo de comunicação patriarcal, baseado no estudo do desejo de usuários para impor nossas vontades sobre eles.
1 Pesquisador do Instituto de Pensamento e Cultura da América Latina, IPECAL. Doutorando em Comunicação pela Universidade Pompeu Fabra. Membro do grupo JOVIS.CO. Correio: [email protected]
2 https://es.wikipedia.org/wiki/The_Waldo_Moment
3 https://www.lavaca.org/deci-mu/deci-mu-con-mujeres-creando/
4 https://www.paginasiete.bo/opinion/maria-galindo/2019/11/13/la-orfandad-que-deja-el-caudillo-237239.html
5 https://elpais.com/tecnologia/2006/02/28/actualidad/1141118880_850215.html
6 http://www.sinpermiso.info/textos/el-final-del-neoliberalismo-progresista
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