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Debate

Classe trabalhadora no século XXI? A cegueira da esquerda na luta de classes

Imagem: Un Soir de Grève, Bruxelles, Eugène Laermans (1893)
17 de março, 2020 Atualizado: 15:25

Ana Júlia e Caio Sanchez – Redação UàE – 17/03/2020

O atual cenário político, em vias superficiais, não carece de diagnóstico: é evidente que a crise do capital está longe de ser solucionada pela classe dominante – assistimos na última semana inclusive ao fenômeno circuit breaker na bolsa de valores – ao passo que a esquerda não consegue apresentar qualquer proposta efetiva para pôr fim a truculência e desamparo da vida cotidiana. Enquanto eles avançam, segundo Paulo Guedes, cada vez mais, do outro lado o horizonte político está altamente embaçado. O que parece surgir diante de nós com um aspecto turvo parece ser, portanto, não a constatação de que as coisas não vão bem, mas a resposta do porquê não reagimos.

Para aqueles cuja perspectiva ainda se encontra em retomar os chamados anos dourados do petismo, a resposta é dada com ácido rancor: “eu avisei, olha aí o presidente de vocês”, exibindo uma esperança mórbida e resguardando a energia potencial da classe para as próximas eleições. Por outro lado, os ditos “radicais” da esquerda poderiam seguir colocando na conta dos “anos de conciliação petista” a apatia dos trabalhadores perante a brutalidade do capital. Mas uma coisa é certa: nenhuma das duas posições parece responder à altura de nossos desafios. Nos resta, então, trazer uma outra perspectiva a esse problema com o qual precisamos nos ocupar e apresentar possíveis caminhos.

Discordamos da fórmula simples de que bastaria entrar em mais contato com o “povo” – seja lá o que isso significa – para convencê-lo de que o Governo Bolsonaro tem destruído cotidianamente nossas possibilidades de vida. São inócuas as tentativas e energias gastas em dialogar pessoalmente com a população com o objetivo de convencimento ou ensinamento. Primeiro, por ser materialmente quase impossível; segundo, porque, apesar de importante, não basta escancarar o absurdo relacionado ao presidente – de laranjas a milícias a lista só cresce – para que tomemos a história em nossas mãos. Talvez, para que possamos compreender como viemos parar aqui, devêssemos retomar o que significa a expressão do poder do Estado.

Se olharmos para as tradições das revoluções burguesas que ocorreram em países como a França, para que pudesse assumir a posição de classe dominante, a burguesia expressou sua vontade particular de classe enquanto vontade universal da sociedade civil. Para combater a conservadora monarquia, essa classe, com apoio irrestrito do proletariado, assumiu o lema de igualdade, liberdade e fraternidade e arrancou dos velhos monarcas sua posição de privilégio. Tão logo tornou-se a classe dominante, ela precisou impor seu próprio projeto de sociedade, o que não tardou a entrar em conflito com sua base de apoio: o proletariado. Não à toa, a tríade que evocou a revolução transformou-se em igualdade jurídica e liberdade de mercado. Do ideal de fraternidade só nos resta a cena obscena entre representantes do Estado e os grandes capitalistas. 

O que é relevante para nosso debate é o fato de que esse elemento é indispensável para expressão de poder do Estado: a classe dominante compreende que precisa expressar suas concepções enquanto vontade geral da sociedade civil. E foi isso que fez Bolsonaro nas eleições de 2018 com excelência. Não foi necessário dialogar com cada trabalhador – ele sequer comparecia aos debates, tamanha sua imbecilidade -, mas conseguiu incorporar o desejo de transformação sistêmica da sociedade, enquanto que a esquerda, em sua frágil expressão política, representava a moderação e a defesa do Estado – que por malícia ou incompreensão ela esquece ser capitalista –  com suas propostas extremamente pontuais. 

Ou seja, na ausência de um projeto geral para a classe trabalhadora, a esquerda preferiu  resguardar-se a uma posição conservadora defendendo aquilo que existe e mais ou menos combina com uma posição progressista, focada em tarefas específicas e pontuais que, ainda que possam ter um efeito imediato, estão longe de apresentar uma solução para a crise do capital, que a cada dia torna mais difícil a reprodução da vida da classe trabalhadora.

A ausência de sentido comum para a classe é tamanha que somente diante de uma pandemia mundial somos coletivamente capazes de nos situar em torno de uma unidade comum. O surto de coronavírus tem imposto a necessidade de medidas sanitárias a todos, solidariedade dos mais jovens com o grupo de risco dos idosos e o fechamento de fronteiras que nos lembram dos limites de nossa liberdade individual. 

Diante disso, é possível lançar a seguinte hipótese: para que a classe trabalhadora realmente possa emergir sua vontade como expressão universal e tornar-se a classe dominante, é necessário que ela ressurja novamente enquanto classe. O que nos leva a uma nova polêmica. Será que não perdemos de vista o debate fundamental feito por Marx quando, em 1844, elabora com precisão o sentido de classe na sociedade capitalista? 

Na Introdução do livro “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, Marx debate a possibilidade de uma revolução na Alemanha e é nesse contexto que sua capacidade imaginativa do futuro é brilhante. Ele se questiona, “em que se baseia uma revolução parcial, meramente política?”, e, claro, sua resposta não poderia ser menos exata: “no fato de que uma parte da sociedade civil se emancipa e alcança o domínio universal; que uma determinada classe, a partir da sua situação particular, realiza a emancipação universal da sociedade. Tal classe liberta a sociedade inteira, mas apenas sob o pressuposto de que toda a sociedade se encontre na situação de sua classe, portanto, por exemplo, de que ela possua ou possa facilmente adquirir dinheiro e cultura.” O proletário, se emancipa, ou seja, realiza o processo revolucionário enquanto agente e sujeito universal, e, fazendo isso, altera toda a sociedade – uma vez que a sociedade civil se expressa no Estado.

É esse sentido do debate sobre classe que não podemos perder de vista. Falar sobre classe não é fazer uma descrição moral, é falar de quais são as condições para a tomada do poder de acordo com as especificidades de nossa classe trabalhadora. As estratégias do capital para nos roubar nossa universalidade são diversas. O avanço do capitalismo fez crescer também o seu caráter antirrevolucionário, empurrando formas de trabalho que impedem inclusive a relação direta entre os trabalhadores, tornando mais difícil sua união enquanto classe. Um bom exemplo são os trabalhadores de aplicativos – de todos os tipos: entregadores, motoristas, babás, passeadores de cachorro, serviços para casa no geral, dentre as diversas categorias –, trabalhos sem relação imediata com a produção, mas que respondem às novas formas de valorização de capital e de prevenção contra qualquer possibilidade de emergência da classe trabalhadora enquanto vontade universal.

Ao invés de assumir sua fraqueza e irresponsabilidade – que aparece mais explicitamente depois de 2013 -, sem ter apresentado um futuro socialista para a classe trabalhadora, a esquerda dissolve sua potencialidade revolucionária em vacilantes unidades populares e grandes frentes amplas, repetindo estratégias do passado que nós já cansamos de ver seu resultado. Nessas uniões são mascaradas as verdadeiras divergências, o que torna impossível o avanço na construção de um programa em comum para o futuro da sociedade. Abandonam inclusive a noção de classe em nome de “o povo pobre”, em uma tentativa desesperada de gerar identificação com aqueles que sofrem os efeitos mais brutais da exploração. Nada disso parece gerar efetivamente a verdadeira unidade que precisamos.

Talvez a compreensão do filósofo Vladimir Safatle seja de fato muito acertada, e que o primeiro passo para a esquerda seja morrer. Para que, assim, ela possa então ressurgir verdadeiramente como classe trabalhadora e apresentar seu projeto para toda a sociedade.

*Os textos de debate são de responsabilidade dos autores e podem não refletir a opinião do jornal


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