Entrevista
Chile: “O oásis nunca existiu de fato, a não ser para o 1% dos multimilionários chilenos” por Sabrina Aquino
L. H. S. – Redação Universidade à Esquerda – 06/11/2019
O Universidade à Esquerda entrevistou Sabrina Aquino sobre suas percepções acerca do atual momento de luta no Chile. Leia a íntegra da entrevista:
1) Você poderia se apresentar? Pode falar de si mesma, onde atua, sua trajetória política, sua organização política, porque está no Chile, etc.
Meu nome é Sabrina Aquino, formada em história social, brasileira residente no Chile há 9 anos. Feminista, comunista, milito em um partido político em processo de legalização chamado Convergência Social, e que faz parte de uma coalizão política chamado Frente Amplio.
2) O Chile, anunciado como um oásis na América Latina, como um país muito estável, inclusive por isso escolhido para sediar a final da copa Libertadores da América, passa por uma reanimação da luta de classes. Porque você acha que esteve “estável” por tanto tempo, e porque essa explosão de mobilizações agora?
Na verdade, jamais esteve estável. Esse é o discurso oficial dos governos neoliberais no Chile, herdado da ditadura, para seguir passando uma ilusória imagem de confiabilidade para seguir gerenciando os interesses dos empresários especuladores e rentistas do país. Primeiro o que tem que se colocar aqui é que o Chile da atualidade é um modelo privatista fundado a base da Doutrina do Shock de Milton Friedman e seus pupilos, os “Chicago Boys”. Retomo à rebelião dos secundaristas em 2006 (Revolución Pinguina), contestando o retrato dessa herança que não privatiza só os transportes, mas a educação, a saúde, o sistema de pensões, a água. Muita gente me pergunta qual foi o motivo para que o presidente Piñera decretasse “Estado de Emergência”, o que se revelou um estado de exceção com toque de recolher e mais de 2.500 feridos pelas mãos dos agentes de repressão do estado, estupros de mulheres e um homem homossexual, mais de 150 pessoas com traumas oculares graves e muitos destes, cegos para sempre em virtude de disparos feitos pela polícia. Ora, porque ele é de direita, e a direita faz é isso mesmo… criminaliza, dá golpe. Essa é a resposta curta e objetiva.
É crucial que as pessoas compreendam que a explosão social que o mundo inteiro vê hoje não é novidade aqui. A percepção do povo quanto a crueldade desse modelo e a necessidade de reclamar um novo pacto social não apareceu semana passada com o aumento da tarifa. O povo do Chile sempre esteve nas ruas, pois sempre foi um país de muita convulsão social. Basta lembrar a “Revolución Pinguina” em 2006 e o movimento estudantil de 2011, contestando o legado pinochetista fortíssimo na educação, que tem exclusivamente o lucro como objetivo, a educação como bem de consumo. Gostaria que as pessoas no Brasil compreendessem que o “oásis” nunca existiu de fato, a não ser para o 1% dos multimilionários chilenos. O próprio Banco Mundial declara que o Chile é um dos países mais desiguais do mundo, onde esse mesmo 1% de super-ricos concentra 26% de toda a riqueza produzida no país. O salário mínimo no Chile gira em torno de 424 dólares, e as pensões por aposentadoria em torno de 300 dólares. Os e as trabalhadoras chilenas sofrem hoje como nunca. Revivendo essa memória de revoltas recentes, destaco que 2006 os estudantes de ensino médio saem a questionar Bachelet pela LOCE (Lei Orgânica Constitucional de Ensino) ditada pela ditadura e que o governo progressista de Michele Bachelet ainda o sustentava, fim da municipalização dos colégios, e outras reivindicações em torno da organização do próprio movimento estudantil. Ganhou uma adesão imensa, balançou o governo de Bachelet, mas no fim, terminou com um pacto das elites que não mudou nada de substantivo para os estudantes. Em 2011 os protestos por “No a Hidroaysén” ganharam projeção nacional e se somam com os protestos dos estudantes que voltam a balançar as estruturas, e mais uma vez, são os secundaristas que começam as manifestações. Logo, o Movimento Estudantil universitário toma o protagonismo e o movimento ganha força e se transversaliza rapidamente, pois evidentemente, não era só sobre educação gratuita… era também sobre denunciar a democracia restrita, o alto endividamento da população, a precarização trabalhista, a desesperança.
Em 2016 as ruas também lotaram de norte a sul por No+AFP. Em 2018 as feministas ferveram as universidades e as ruas com a “Ola Feminista“, nós pintamos o Chile de lilás reclamando pela misoginia nas instituições de ensino. Este ano de 2019, balançamos 72 cidades com a greve feminista no 8 de março com o “Maio feminista”. Só em Santiago saíram 400 mil às ruas em apoio à greve do setor reprodutivo. Com três meses de governo, Sebastián Piñera teve que sair a falar (palavras vazias, certamente) para uma nação que dizia alto e claro: basta de precarização da vida. Então, o Chile “não despertou” semana passada, por mais que seja essa a consigna que ressoa na boca de milhares.
3) Qual o papel que a repressão, muito violenta, vem cumprindo no Chile?
Para mim está claro que a repressão exacerbada é “a gota que transbordou o copo” em relação as manifestações, mas essa sempre foi o modus operandi da direita chilena. Não é novidade aqui as inúmeras violações de direitos humanos, e para compreender isso, basta ver como a Forças Especiais dos Carabineros de Chile agem na Araucanía. É evidente que subiram o tom de forma absurda dentro de um governo que se quer Estado Democrático de Direito e Piñera respondeu com fascismo porque ele quer tirar o povo das ruas com a bota milica em cima, e pelo que vemos, nem assim está conseguindo. Levantou-se a desobediência civil como nunca antes vista. Inclusive, Piñera teve que suspender a APEC e a COP25 que estava programada para acontecer no próximo mês. Visivelmente Sebastián Piñera está desesperado porque desde que entrou a governar não consegue tirar o povo das ruas.
A parte disso se vem denunciando com muita força nas redes sociais que a polícia e o exército chileno estão por trás da maioria dos atos que o governo e a TV aqui estão chamando de “vandalismo” pra justificar a ocupação militarizada nas ruas. Militarização que está matando e deixando diversos civis feridos, casos de tortura, estupros e sequestros de militantes e dirigentes políticos para intimidação. Estamos vivendo sob o terrorismo de estado descarado. Houve execuções feitas à plena luz do dia, na cara de todos. Evidentemente não é mostrado para fora como o Estado é o responsável pela violência que nos ataca a plena luz do dia, que como disse, já deixou vários feridos com gravidade, casos de estupro, tortura e mortos. Não se mostra na mídia hegemónica como “estranhamente” as estações de metrô, ônibus foram deixados abandonados precisamente para agudizar a percepção geral de como somos dependentes desses serviços. E a forma como se forja vários atos de “vandalismos” sendo capturadas por telefones de cidadãos comuns, que circulam aos montes pela internet. Depois de mais de uma semana de toque de recolher, o presidente da república aparece a público para pedir perdão, numa tentativa frustrada de acalmar a cidadania após haver lhe declarado guerra. O teatrinho de pedir “perdão” mais que nada foi uma tentativa de fazer a esquerda ficar em “maus lençóis” perante a opinião pública porque não quer aceitar diálogo com suas propostas enquanto houver repressão sanguinária.
Muitos dizem que se trata de uma insurreição espontânea a nível nacional depois do recrudescimento da violência, mas tendo a desconfiar desse diagnóstico, dado as inúmeras montagens de incêndios e atos “vandálicos” executados pelas forças de repressão flagradas por civis em vídeos que circulam pelas redes sociais. Creio que houve uma tentativa de manipular essa revolta e também escapou do controle da direita e ultradireita.
4) Temos notado, ainda que de longe, uma organização diferente dos atos de rua que acontecem no Brasil. Os blocos anti-bomba, os atos animados com música e arte. Você poderia nos falar um pouco sobre isso?
Na verdade essa sempre foi uma característica das manifestações chilenas. Não é nenhuma novidade aqui. Basta buscar imagens nas redes sociais das manifestações que citei anteriormente. Creio que é novidade para o Brasil e para o mundo que talvez nunca prestou a devida atenção no Chile, a não ser pela ótica da narrativa dominante de “oásis econômico”.
5) Desde aqui, temos notado que as mobilizações no Chile passam, muitas vezes, por fora dos instrumentos clássicos da classe trabalhadora, como as centrais sindicais, os partidos, como é isso? As tentativas que o governo faz de tentar “enrolar” a massa dos manifestantes parece contar com a conivência desses instrumentos, ou pelo menos com a de alguns deles.
Há de fato uma inorganicidade que surgiu no movimento anti-aumento da tarifa em Santiago, impulsionado pelo “Liceo I” (colégio para meninas), o que é algo comum nesse tipo de insurreição. Aqui no Chile, inicialmente, as explosões massivas de reivindicações costumam passar por fora das organizações tradicionais, como sindicatos. O Chile é um dos países com a taxa mais baixa de sindicalização do mundo, por tanto, o movimento estudantil cumpre um papel fundamental nas organizações sociais aqui. E vejo que mundo afora (e por parte de alguns setores aqui também) é celebrado a inorganicidade porque existe um anticomunismo muito em voga, não distinto dos contextos mundiais. Não é verdade que não há bandeiras de organizações políticas nos protestos. Não é verdade que não há sindicatos presentes. Ontem mesmo a ENAP (Empresa Nacional de Petróleo) anunciou greve do setor. Está-se articulando Greve Geral, tudo isso para que se defina uma nova constituição para o país porque a atual foi definida sob a ditadura de Pinochet em 1980 e revalidada por Ricardo Lagos em 2005.
6) Com preocupação também temos notado, em algumas publicações sobre a central única de trabalhadores do Chile, a abertura e uma resposta positiva aos chamados que fazem o empresariado para negociação. Que, nos parece, trata-se de negociações fracionadas, locais, de cada empresário com seus trabalhadores. Como está isso? Com isso os empresários não querem se separar da figura do governo? Qual o papel e a influência que o liberalismo cumpre dentro da esquerda chilena e nas manifestações?
A CUT não tem a menor credibilidade aqui no Chile. De fato, não é um bom referente a seguir para se compreender o que acontece no país. É aparelhada pela Concertación e a Nueva Mayoría (coalizão política que representa Bachelet), assim estão tão descredibilizados como Piñera. Essa coalizão representa o pacto político empresarial que aprofundou o modelo neoliberal chileno e o povo tem isso muito claro.
Quando você me pergunta sobre o papel que a esquerda chilena cumpre dentro das manifestações, é importante diferenciar de qual esquerda se está referindo. O Frente Amplio chileno, por exemplo, não é a esquerda tradicional, é uma nova coalizão política que se tornou a 3ª força no cenário a partir de 2017, e que nasceu com um propósito de levantar alternativa para disputar forças com o que chamamos de “duopólio”, ou seja, os dois polos hegemônicos da política tradicional, divididos entre uma coalizão de direita e a esquerda moderada (Nueva Mayoría). O Frente Amplio surge inspirado na experiência Uruguaia e obviamente com outras problemáticas para solucionar. Não obstante, um dos critérios fundacionais para fazer parte dessa coalizão é estar do lado oposto ao duopólio: direita e esquerda moderada, e não se sentar de nenhuma forma com o empresariado, muito menos receber deles patrocínio de campanha. Nossa aposta triunfou, nos posicionamos como a 3ª força nacional com uma porcentagem de 20,4% na votação para presidente da república com a ex-candidata Beatriz Sánchez, e que, por um pouco mais de 2%, iríamos para o 2° turno. Conseguimos um saldo de 20 parlamentares e 1 senador eleitos em menos de 1 ano de articulação oficial. Esse protagonismo está colocado principalmente com a figura do prefeito de Valparaíso, Jorge Sharp. E com certeza a coalizão política é alvo do discurso de direita e ultradireita como “inimigo interno”. Detalhe: o voto no Chile não é obrigatório e todo o exercício de propaganda e campanha das nossas propostas consistia em convocar gente que não se interessa/acredita mais na política institucional, e muito disso tem a ver com o sentimento de traição em relação à esquerda hegemônica que hoje aparelha a CUT.
7) O que as classes trabalhadoras, do Brasil, mas de outros lugares também, podem aprender com a experiência de luta dos Chilenos?
A ver os empresários, não somente os políticos profissionais que gerenciam seus interesses, como inimigos. A convocar desobediência civil, ainda sob um Estado de sítio, porque já não temos mais nada a perder, a não ser nossos grilhões.
8) Nas nossas avaliações temos notado que para além da solidariedade formal, através de notas de apoio ou coisas parecida, pouca coisa tem sido feita pelos movimentos, partidos e instrumentos das classes trabalhadoras de outros países. Com exceção do sindicato internacional dos estivadores, exemplo do que pode ser solidariedade entre os trabalhadores do mundo.
Essa quebra da solidariedade entre os trabalhadores é mais uma vitória do neoliberalismo e de sua forma de subjetividade? Como você avalia isso, dentro dos movimentos e partidos no Chile, e internacionalmente? Nossa avaliação está correta?
Totalmente correta avaliação. Daqui temos visto muitas manifestações de solidariedade política, para além da romantização com o que acontece no Chile, e de fato, mais de caráter simbólico e performático que chamando a parar a produção. Isso diz muito sobre como o neoliberalismo e a precarização dos direitos trabalhistas também vem enfraquecendo a internacionalização da luta da classe trabalhadora. Não obstante, devemos olhar para as feministas, pois, ainda com esse cenário devastador para a organização do setor produtivo, são as trabalhadoras do setor reprodutivo que estão conseguindo se articular de maneira extremamente nova e internacionalizando a luta, chamando a cruzar os braços com greves de fato. Por que de fato? Porque são greves que incluem a outra metade da população, chamando a cruzar os braços dentro da casa, parando com o trabalho totalmente invisibilizado, o trabalho de cuidados.
9) Há mais algo relevante que você gostaria de acrescentar?
Gostaria de acrescentar, para finalizar, que me preocupa a romantização que se faz do que acontece no Chile, porque ainda que a população chilena saiba bem quem os rouba, existe também muita despolitização, afinal, é uma explosão massiva e heterogênea nas ruas. Nota-se um rechaço ao setor político de forma generalizada pela crise de representação, mas, independentemente disso, há um rechaço muito evidente e muito expressivo ao Presidente Piñera. Por isso há que se destacar o papel da esquerda radical no Chile, em representação do Frente Amplio. Obviamente, existe a intenção por parte de setores de ultradireita de colocar a responsabilidade do “caos social” (provocada pelos militares nas ruas, vale dizer), no Frente Amplio, nas costas da esquerda em geral e nos movimentos sociais, e isso é muito evidente, pois se plasma na disputa política municipal que se aproxima. O prefeito de Valparaíso, Jorge Sharp, é um dos alvos mais evidentes dos ataques do campo de direita à ultradireita. Estes setores estão abertamente antagonizando com o processo construído por Valparaíso em nome do Frente Amplio. E claro, também contra o Partido Comunista chileno na figura de Daniel Jadue, prefeito de Recoleta na região metropolitana.
Assim, quero finalizar destacando a importância de uma esquerda construída fora do discurso do progressismo falido latino-americano, uma esquerda que reivindica o feminismo como uma de suas diretrizes e, portanto, saem a marchar com suas bandeiras junto ao povo chileno e não são coagidos e expulsos das manifestações, diferentemente do que aconteceu na esquerda no Brasil em 2013 e 2014.
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