Debate
[Especial] “Não há ninguém além de nós mesmos para salvar Assange”, por Slavoj Žižek
Slavoj Žižek – Traduzido por Allan Kenji Seki – Para o UàE – 12/04/2019
Acabou por finalmente acontecer: Julian Assange foi arrancado da embaixada equatoriana de Londres e preso. Não é uma surpresa: já faz algum tempo que inúmeros sinais pressagiaram um desfecho como esse. Uma ou duas semanas atrás, WikiLeaks havia previsto que a prisão estaria próxima, ao que o Ministro de Relações Exteriores e Mobilidade Humana do Equador havia respondido que seu país não considerava retirar de Assange o asilo que lhe haviam concedido – uma mentira descarada, como podemos ver agora. Mentira que foi acompanhada de outra agora: o Wikileaks, eles disseram, estaria prestes a divulgar fotografias da vida privada do presidente equatoriano (mas que interesse teria Assange de agir assim, de se colocar em tamanho perigo?). A recente prisão de Chelsea Manning (amplamente ignorada pelos meios de comunicação) também cabe nesse quadro. Após ela ter sido perdoada pelo presidente Obama, Manning agora foi jogada no confinamento solitário, o objetivo é obviamente força-la a divulgar informações sobre suas ligações com o WikiLeaks – e tudo isso para fundamentar o procedimento judicial que será automaticamente desencadeado se os Estados Unidos colocarem as mãos em Assange.
Um assassinato simbólico
A possibilidade de extradição para os Estados Unidos é cada vez mais real ao vermos a atitude da Grã-Bretanha que, ao invés de dizer que ela não extraditaria Assange aos Estados Unidos, limitou-se a declarar que não lhe extraditaria para um país no qual ele seria passível da pena de morte. Devemos considerar também a campanha de comunicação perfeitamente orquestrada nesses últimos meses sem descanso e que culmina com esses rumores não verificados segundo os quais os equatorianos já queriam se livrar de Assange em razão de seu mau cheiro e de suas roupas sujas.
Assange, paranoico? Se você vivesse permanentemente em uma sala cheia de microfones, sendo objeto de constante vigilância dos serviços secretos, você não teria razões para se tornar um? Assange, megalomaníaco? Se o principal chefe da CIA (ex-chefe agora) declarasse que a sua prisão é sua prioridade absoluta, ele não estaria lhe dando a entender que você representaria no mínimo uma ameaça “considerável”? Assange, se comportando como o líder de uma rede de espionagens? Mas o WikiLeaks é uma rede de espionagem, uma que realmente serve às pessoas, mantendo-as informadas sobre o que realmente está acontecendo nos bastidores.
Levantemos, então, a grande questão: por que agora? Um nome me parece explicar tudo: Cambridge Analytica. Um nome que resume todos os combates de Julian Assange – que consiste em divulgar os elos entre os grandes consórcios privados e as estruturas governamentais –, um nome que representa tudo contra o qual ele luta. Lembremos de todo o alvoroço sobre as interferências russas nas eleições americanas, uma verdadeira obsessão pelo tema. Nós sabemos agora que não foram os hackers russos (e Assange) que empurraram o povo americano para os braços de Trump, mas organizações especializadas no tratamento de Big Data e estreitamente relacionadas com o poder político. Isso não quer dizer que a Rússia e seus aliados sejam inocentes: eles provavelmente tentaram influenciar as eleições da mesma maneira que os Estados Unidos fazem em outros países (mas nesse caso se chama “apoiar a democracia”…). Então, o isso realmente revela é que o grande lobo mau depravador de nossa democracia se encontra exatamente aqui, entre nós, e não no Kremlin. Está aí o que Assange vinha constantemente afirmando em alto e bom som.
No entanto, onde se encontra exatamente esse grande lobo mau? É claro que existe o controle e a manipulação, mais para termos uma ideia mais precisa é importante ultrapassar as aparentes ligações entre certas empresas privadas e os partidos políticos (como no caso da Cambridge Analytica). É a interpenetração entre empresas como o Google e o Facebook, especializadas no tratamento de gigantescos volumes de dados e as agências governamentais dedicadas à segurança do Estado o que deve nos interessar acima de tudo. Muito mais do que nos indignar do que se passa na China, nós faríamos melhor de nos indignarmos contra nós mesmos, que aceitamos tamanho controle enquanto nos afirmamos livres, pois o fazemos acreditando que tratam-se apenas de serviços que simplesmente nos ajudam a realizar nossos objetivos (ao menos os chineses não precisam inventar histórias para si mesmos: eles sabem perfeitamente que estão sendo controlados). O quadro geral que está emergindo – quando o complementamos com o que já sabemos sobre os últimos avanços na biogenética – nos oferece uma visão completamente aterrorizante sobre as novas formas de controle social, que em comparação com o bom e velho “totalitarismo” do século XX, faz com que ele se pareça mais com uma maquina de controle bastante primitiva e desajeitada.
Tirar a internet do controle do capital privado e do poder do Estado
A maior conquista desse novo complexo militar-cognitivo é justamente repressão óbvia e direta já não é mais necessária: as pessoas são muito mais bem controladas e dirigidas quando elas podem continuar acreditando que são agentes autônomos e livres de suas próprias vidas. Essa é a outra lição chave que aprendemos com o WikiLeaks: a nossa perda de liberdade é muito mais perigosa quando nós a experimentamos como se fosse uma manifestação verdadeira de nossa liberdade. O que poderia ser mais livre do que esse fluxo comunicacional incessante que permite que cada um de nós expresse nossas opiniões e formemos comunidades virtuais de acordo com nossos interesses? Na medida em que a liberdade e a livre escolha aparecem como valores supremos, parece que o controle social e a dominação já não ameaçam mais o sujeito e a sua liberdade: o indivíduo supostamente livre experimenta isso como uma experiência de si mesmo e ao fazer isso, se reconforta. O que haveria de mais livre, de fato, que nossos modos de “navegar” na internet sem quaisquer restrições? Eis aí como opera hoje “o fascismo que tem o cheiro de democracia”.
É por isso que é absolutamente imperativo tirar o controle da internet do capital privado e do poder do Estado, de submetê-la inteiramente ao debate público. Quando o Google encontrou o WikiLeaks (Boitempo, 2015), livro de Assange, estranhamente ignorado, contém páginas profundamente justas sobre esse tema: afim de compreender como nossas vidas são controladas hoje e como esse controle é experimentado como se fosse liberdade, é preciso antes e acima de tudo compreender a relação muito obscura entre as empresas privadas que controlam nossos bens comuns e as agências de inteligência dos Estados.
Nós podemos agora compreender por quais razões Assange foi reduzido ao silêncio: uma vez que o “escândalo” da Cambridge Analytica irrompeu, o poder político logo procurou diminuí-lo como um caso isolado temendo um “mau uso” de algumas empresas e partidos. Mas onde estaria o próprio Estado? Onde estariam os aparelhos semi-invisíveis e que são parte daquilo que chamamos de “Estado profundo”? Não é surpreendente que justamente o The Guardian, que consagrou páginas inteiras ao “escândalo” da Cambridge Analytica, tenha recentemente publicado um ataque totalmente repugnante contra Assange, lhe apresentando como um megalomaníaco e um delinquente fugitivo. Escreva tanto quanto você queira sobre a Cambridge Analytica e Steve Bannon, mas não reflita sobretudo sobre aquilo para o qual Assange havia apontado o dedo: para o fato de que os aparelhos de Estado, que deveriam investigar o “escândalo”, são eles próprios partes ativas e integrantes do problema.
Ele espiona os poderosos para o povo
Assange apresenta a si próprio como um espião do povo, trabalhando por ele e para ele: não espiona as pessoas em favor dos poderosos; ele espiona os poderosos em favor das pessoas. Eis porque não há mais ninguém a não ser nós mesmos, o povo, e que possa realmente fazer algo para lhe ajudar. Somente a nossa mobilização, somente a pressão que nós podemos exercer sobre o poder político, permitirão tirá-lo dessa situação terrível. Nós lemos muitas coisas sobre os feitos e métodos dos serviços secretos soviéticos: como eles puniram seus traidores, inclusive os fazendo esperar décadas por isso; como eles conseguiram libertar seus membros que caíram nas mãos dos inimigos e tornaram-se prisioneiros, além da obstinação que demonstraram. Assange, contudo, não tem qualquer Estado ao seu lado: ele não tem nada além de nós, o povo. Então, vamos fazer no mínimo aquilo que os serviços secretos soviéticos fizeram à época: vamos nos obstinar a libertá-lo, e pouco importa o tempo que isso leve!
O WikiLeaks é apenas o começo, nossa moeda deveria ser uma moeda maoísta: que floresçam cem WikiLeaks. O pânico e o ódio com os quais os poderosos, todos esses que controlam nossos meios eletrônicos, reagiram à batalha de Julian Assange demonstraram por si mesmos como algo assim toca seus nervos mais sensíveis. Nesse combate, numerosos golpes serão dados abaixo da cintura: assim como Assange foi acusado de se colocar ao serviço de Putin, nosso lado vai ser acusado de jogar o jogo do inimigo; mas é preciso nos habituarmos a isso e aprendemos a revidar os golpes, a jogar um lado contra o outro afim de fazer com que eles finalmente entrem em colapso.