A violência policial no Brasil: as mortes para garantir a lei e a ordem
As particularidades da segurança pública no Brasil e o papel das repressões
Por Flora Gomes, redação do Universidade à Esquerda
19 de agosto, 2022 Atualizado: 14:03
A violência policial nos centros urbanos de diversas cidades brasileiras é um problema histórico em nossa formação social. Desde os primórdios das formações das cidades, o Estado responde com violência extrema aos efeitos da ocupação desigual do espaço urbano, cuja organização exclui as parcelas mais pauperizadas da classe trabalhadora de poder habitar dignamente as cidades. Essa violência é justificada em nome da “manutenção da ordem”, ordem esta cujo pressuposto é a própria desigualdade.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, foram registradas 6.145 mortes apenas no ano de 2021 em decorrência de operações policiais. As mortes praticamente triplicaram desde o início do levantamento em 2013. Apesar de ter havido uma leve diminuição nessas mortes em relação ao ano anterior, o número ainda é muito expressivo. Alinda, é necessário considerar que esses números podem sofrer subnotificações, tendo em vista que nem todas as mortes por confronto policial são notificadas à segurança pública.
Elaboradopelo Anuário de Segurança Pública 2022
O documento ainda aponta que as vítimas em sua maioria são homens, adolescentes e jovens, pretos e pardos. No último ano, 99,2% das vítimas eram do sexo masculino e 84,1% negras. Ou seja, os policiais já têm uma mira escolhida para suas operações. Escolha essa baseada em pressupostos racistas reforçados diariamente em diversos espaços sociais.
As operações policiais são, em sua maioria, justificadas pelos órgãos oficiais em nome do combate ao crime organizado. Os policiais invadem casas, ameaçam moradores, apontam armas pelos bairros e executam pessoas. Mesmo se considerarmos que de fato a polícia estaria invadindo as favelas para este fim, não há justificativa para as torturas, violências contra civis e outros crimes cometidos pela própria polícia nessas operações.
Essas ações, ocorridas principalmente nas favelas brasileiras, são extremamente violentas. A morte de pessoas comprovadamente inocentes, como crianças, é tratada como um efeito colateral de se fazer “o bem” em nome da lei. E, ainda que a polícia possa ter como alvo pessoas realmente ligadas ao crime organizado, não se justifica assassiná-los. Estes deveriam ter o direito de serem julgados.
Há setores reacionários que afirmam certa equivalência nos índices de violência entre ambas as partes – policiais e civis – já que os primeiros também morrem nessas operações. Contudo, segundo o anuário de segurança pública, 190 policiais foram assassinados em 2021, e, em sua maioria, nos dias de folga. Ou seja, quem realmente tem sido vítima das operações policiais são os civis.
A segurança Pública no Brasil
Apesar de todo Estado capitalista contar com um aparelho que garanta com que a justiça do capital siga sendo feita, há algumas particularidades por sua posição periférica e subimperialista. Devido aos mecanismos de superexploração – que operam as transferências de parte dos lucros obtidos aqui para as burguesias de países de capitalismo central – a classe trabalhadora de países periféricos sofre de forma muito mais intensa os efeitos da acumulação capitalista. Isso fica visível ao analisarmos o poder de compra do salário mínimo, por exemplo.
Essa condição dependente faz com que exista uma massa extremamente pauperizada e empobrecida, o que traduz em uma determinada forma de controle social por parte do Estado. A classe trabalhadora, principalmente os setores mais pauperizados, são submetidos à coerção constante do Estado. É fundamental, do ponto de vista do capital, que a classe trabalhadora siga sendo submetida à barbárie, e que perante as evidentes contradições desse sistema, o aparelho repressor do Estado reprima qualquer tentativa de sublevação. O Estado necessita recorrer à violência extrema para gerir os efeitos da degradação em um país dependente.
Há um dispositivo do Estado brasileiro que autoriza o uso explícito das Forças Armadas em nome da Garantia da Lei e da Ordem. A Lei Complementar n˚ 97, de 1999, dentre outras coisas, prevê que o Presidente da República possa acionar a qualquer momento as Forças Armadas com o objetivo de garantir a ordem. Ou seja, em nome de levar a paz, o chefe do executivo pode acionar a qualquer momento um aparelho preparado para enfrentar guerras contra sua própria população.
Em 2014, por exemplo, foi criada uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Favela da Maré, no Rio de Janeiro. Forças Armadas e a Polícia trabalharam nessa unidade para levar “pacificação” à favela. Contudo, na prática, alguns estudiosos apontam que essa operação substituiu as armas que estavam nas mãos de grupos criminosos para as mãos do Estado, o que trouxe diversas denúncias de violência e abusos cometidos pelos agentes de segurança pública no território. Uma das pessoas que estudou esses efeitos foi Marielle Franco, vereadora do PSOL assassinada em 2018. O crime nunca foi solucionado pelo Estado, mas há fortes indícios de que foi motivado pelo papel político que ela cumpria na cidade do Rio.
Apesar de o uso das Forças Armadas ser minoritário na execução da segurança pública no brasil, é com esse espírito de guerra que cotidianamente Policiais Militares e até mesmo Civis invadem as favelas brasileiras para combater o crime organizado.
Diferentemente de outros países, nos quais a Polícia Militar é um aparato utilizado em situações específicas, como na defesa do território nacional, no Brasil a PM está no cotidiano da classe trabalhadora. A origem da Polícia Militar se dá na ditadura empresarial-militar, quando a guarda civil foi incorporada à Força Pública. A formação desses policiais é voltada para realizar o policiamento ostensivo, com um caráter rígido, hierárquico e fechado. A Polícia Militar faz parte da reserva do Exército, podendo ser convocada a qualquer momento para atuar nas Forças Armadas [1]. Sua origem e caráter formativo remontam a uma máquina repressora e de guerra. Esse caráter fica evidente nas operações policiais organizadas pela PM.
Uma lei importante na caracterização da segurança pública do Brasil é a de n˚ 13.260/2016, que ficou conhecida como Lei Antiterrorismo. Sancionada pela então Presidente Dilma em um contexto de acirramento da crise econômica e política no Brasil, o dispositivo prevê como atos de terror “incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado”. A lei buscava, dentre outras questões, frear qualquer tipo de sublevação popular que pudesse surgir naquele contexto. Mais uma vez, como forma de dificultar as reações da classe trabalhadora frente às contradições capitalistas.
A violência policial em Santa Catarina
Para ilustrar a cotidianidade da violência policial, na cidade de Florianópolis, apenas no mês de Agosto, observamos dois casos explícitos de abuso do uso da força.
No início deste mês, em 04/08, desde a madrugada, cerca de 500 policiais do Bope da Polícia Militar invadiram a comunidade Chico Mendes, em Florianópolis, para cumprir 35 mandados de prisão e 80 mandados de busca e apreensão. Segundo os relatos da Polícia, o objetivo da operação era desarticular uma facção interestadual que atuava na região.
Sob esse pretexto, 448 policiais militares realizaram uma operação que resultou na prisão de 31 pessoas, além de apreensão de equipamentos eletrônicos, armas de fogo e substâncias químicas. Os policiais também invadiram os espaços de convívio dos moradores. Foram divulgados vídeos do Projeto Gerações da Chico, Organização Não-Governamental (ONG) que atua no espaço acolhendo crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social, mostrando que os policiais invadiram o espaço da ONG, gerando transtorno e desorganização no espaço. A ONG é um espaço voltado para promover atividades educativas e psicológicas com moradores da região. A ação da polícia estorva a construção de espaços de socialização como este dentro da comunidade.
Somado a essa trágica operação, na última quinta-feira (11/08), durante uma manifestação Fora Bolsonaro no centro da cidade, uma estudante foi detida pela Polícia Militar. Segundo relatos, houve emprego desproporcional da força contra a manifestante. Ela passou a noite no presídio e foi liberada após pressão de diversos setores da cidade. Segundo relatos, a manifestante estava pichando um prédio.
Em casos assim, é usual que a polícia opte pela assinatura de um termo circunstanciado, com liberação rápida da pessoa detida. Contudo, a estudante passou horas em privação de liberdade no presídio, sem contato com colegas e amigos, com pouca comida e poucas roupas em uma noite fria, sem saber ao certo qual seria o resultado dessa ação policial. Apesar da liberação no dia seguinte, essas violências deixam marcas que demoram muito mais a passar.
As violências empregadas pelo aparelho do Estado em suas diferentes frentes de atuação não são uma exceção no dia a dia da nação. Há uma política sistemática de extermínio da população jovem e negra do país, um controle sobre a população das favelas e sobre aqueles que se apresentam como perturbando o status quo. A atuação deste aparelho repressor, como se justifica pelos próprios dispositivos legais, tem como objetivo garantir “a ordem”, ordem essa que perpetua diversas violências cotidianas e invisibilizadas pela ideologia social vigente. Do ponto de vista do Estado, roubar para comer é crime, mas não são criminosos os acionistas do Branco Bradesco, que tiveram um lucro de R$ 7,02 bilhões apenas no segundo trimestre deste ano, enquanto 5,3 milhões de brasileiros agonizam em situação de extrema pobreza, vivendo com menos de R$ 160 reais mensais.
Frente a tantas injustiças diárias em um país tão desigual, as forças repressivas do Estado são convocadas diariamente para conter qualquer princípio de rebelião, sobretudo nos espaços em que a contradição da centralização de riquezas se expressa de forma tão aguda, como nas periferias das cidades. É urgente responder a isso com um projeto de país que tenha como princípio uma justiça efetiva, que reorganize as cidades e as relações de trabalho.