A Reforma Administrativa na agenda da classe dominante
Texto escrito em colaboração com Renato Ramos Milis
Em 19/07, o Presidente da Comissão Especial da Câmara dos Deputados que aprecia a Reforma Administrativa, o deputado Fernando Monteiro (PP/PE), deu uma entrevista à Folha de São Paulo. Nela defendeu uma “Reforma da Câmara”, ou seja a alteração pela via de emendas dos deputados ao texto da Proposta de Emenda Constitucional 32/2020 entregue pelo Governo Federal. A tese defendida por Monteiro é que o Congresso não faça adesão completa ao texto do governo, e que com isso insira suas digitais na proposta.
Monteiro busca com essa afirmação, que tem sido repetida por outros deputados, afastar a Reforma da imagem do Presidente da República Jair Bolsonaro e de seu Ministro da Economia, Paulo Guedes, buscando facilitar sua aceitação pela sociedade, e em particular pelos servidores públicos. O recado de Monteiro é também para a classe dominante: a Câmara vai fazer uma Reforma Administrativa.
As possíveis modificações no texto da PEC 32/2020 que pudessem eventualmente ser feitas pela Câmara, não irão alterar o sentido global da reforma: a fragmentação da função pública, aumentando ainda mais a permeabilidade dos interesses dominantes na prestação dos serviços estatais, além de servir essencialmente ao propósito de devastar os direitos dos trabalhadores. Isso porque, ainda que a reforma tenha sido encaminhada pelo Governo Bolsonaro, sua autoria não muda o fato de que esta é uma reforma cuja pauta é essencialmente comandada pelos interesses dominantes.
As classes dominantes no Brasil argumentam que o aparelho do Estado seria incompatível com as reais necessidades da população, sendo excessivamente inchado de servidores públicos e, no entanto, ineficiente na prestação de funções essenciais à vida dos cidadãos. Defendem, portanto, drástica redução no quadro de pessoal e a contraprestação dos serviços públicos através da lógica privada de mercado, seja incorporando os valores da gestão da força de trabalho própria da forma empresarial, seja pela terceirização da prestação pública.
Essa lógica neoliberal procura desqualificar e desmoralizar o serviço público, reivindicando argumentos que seus aparelhos privados de hegemonia lançam diuturnamente contra esse setor da força de trabalho nacional. Esses ataques, contundentes e frequentes, causam confusões que merecem ser tratadas com ferrenhas resistências. Entre os argumentos mais frequentes que atiçam as veias do populismo, está o mito de que os servidores públicos concentram altos salários: a realidade é que somente 43% dos servidores recebem mais que quatro salários mínimos, não possuem direito ao seguro desemprego ou fundo de garantia (DIEESE). A imensa maioria dos servidores que garante os serviços públicos na ponta da execução das políticas recebe salários abaixo dessa faixa (73%). Os grandes salários nas carreiras e funções estatais, portanto, correspondem a alguns servidores das procuradorias, da Justiça, das polícias e das forças armadas. Essas frações, contudo, não serão atingidas pela atual reforma.
A reforma pretendida também não aumentará a eficiência nas políticas públicas, pois com os principais fatores que impedem a realização de uma boa prestação estatal dizem respeito aos conflitos decisórios e aos interesses privados que retiraram progressivamente a autonomia dos servidores para requerer recursos, meios de trabalho e assegurar resolutividade para as demandas populares. Em casos como o da Infraero, por exemplo, vimos uma das maiores empresas públicas do país e da América Latina ser destruída para que a concessão dos aeroportos mais lucrativos do Brasil fosse concedida à exploração de capitais privados. A força de trabalho na Infraero, até o Governo Dilma, exerceu com brilhantismo suas funções e criou uma força administrativa invejável para os padrões de desordem, por exemplo, do sistema de administração aérea europeia – mas foram justamente as empresas desses países as que mais se beneficiaram do esfacelamento da administração estatal dos aeroportos nacionais, incorporando – inclusive – os melhores quadros em suas fileiras e enviando-os para administrar os aeroportos de suas holdings em outros países.
O mesmo passo vemos ser administrado nos Correios, uma das mais espetaculares empresas públicas do mundo, capaz de assegurar a entrega de pequenas encomendas e correspondências em todo o território nacional com um sistema logístico impressionante. Os correios, hoje, estão na fase final de ataques governamentais, pois interessa mais uma vez aos capitais assumirem o sistema logístico dos setores lucrativos e empurrar aqueles negativos para o bolso da população.
Nada disso depende dos servidores públicos, afinal, a autonomia para a reorganização dos serviços em prol dos interesses maiores do país nunca lhes foi assegurada. Tem-se, evidente, que reconhecer que as lutas desses trabalhadores na defesa das funções precípuas dos serviços e políticas que levam à cabo sempre volta à baila por meio das denúncias, reivindicações e greves.
Por isso, acusar os servidores públicos da ponta de ineficiência tem mais a ver com a estratégia estatal de privatização e concessão das políticas sociais como nicho de exploração pelos capitais do que um diagnóstico sério dos reais problemas que enfrentamos na estrutura pública.
Aliás, é importante dizer que ao tornar os servidores meros empregados, a imensa maioria sem a proteção da estabilidade, a tendência é que o nível geral da eficiência do serviço fique ainda mais precária. Isso porque os servidores públicos só conseguem denunciar casos de corrupção ou desvios no interesse público por poderem contar com algum nível de estabilidade e de proteção. Qualquer liberal sério deveria concordar que diante dos poderes despóticos do Estado, quando ele assume a posição de patrão diante dos trabalhadores, seria necessário mecanismos de controle sobre o exercício de seu poder. Do contrário, o Estado, podendo exercer poderes ilimitados, expressa rapidamente sua perversão e todas as formas de corrupção podem ter vez. Veja-se, por exemplo, como na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da pandemia, foram justamente os servidores públicos protegidos pela estabilidade os únicos que tiveram condições de denunciar um dos maiores escândalos de corrupção na negociação de compra de vacinas. Os funcionários das empresas que realizaram as intermediações, se eram contrários moralmente a esse escândalo, jamais saberemos. Se existe alguém com ética, certamente está amordaçado.
Sem falar que a fragmentação da prestação do serviço público, admitindo trabalhadores temporários em caráter de normalidade tem efeitos conhecidos: a descontinuidade do serviço e dos conhecimentos específicos da função de trabalho. A consequência é que os serviços públicos podem ficar desprovidos de trabalhadores que possam exercer todas as funções que exigem experiência e destreza para que sejam efetivas no atendimento às demandas da população. Além de que isso abrirá brechas para que as questões políticas interfiram diretamente nos serviços, abrindo margem para que diante de divergências entre prefeitos, governadores, ministros e a Presidência da República sejam cortados cargos e funções com o objetivo de prejudicar o atendimento à população e criar falsos sentimentos populares de revolta ao sabor da conjuntura.
Em casos de ciclos descendentes de crises, por exemplo, quando a população mais precisa que os serviços e as políticas públicas estejam em seu máximo funcionamento, a força de trabalho estatal poderá ser cortada para, por exemplo, garantir que o governo possa fazer acordos no Congresso Nacional, comprando o voto de deputados e senadores em troca de emendas parlamentares. Basta a análise da atual conjuntura para sabermos que esse risco é não só potencialmente real como, se estivéssemos já sob os efeitos da reforma administrativa, a catástrofe social da Covid-19 poderia ter sido até cinco vezes pior do que estamos experimentando e note-se: estamos diante da crise mais grave desde 1930.
No fim, ainda que sem largo espectro de autonomia e sob a surra constante da Presidência da República, os servidores públicos em todas as regiões do país valeram-se dos escassos recursos disponíveis e fizeram milagres no cumprimento de suas funções, mesmo quando isso implicou desmentir informações falsas sobre a pandemia, denunciar situações de abuso econômico e de poder, manter abertos hospitais, clínicas e serviços de assistência social com enormes esforços pessoais.
Esta atuação imprescindível dos servidores públicos se dá num momento em que a situação dos trabalhadores brasileiros é drástica. Multiplicam-se notícias sobre as duras penas que os brasileiros enfrentam para sobreviver frente ao desemprego (14,6% da população economicamente ativa), ao rebaixamento salarial, e ao aumento dos preços, como o caso da enorme fila de pessoas que esperava pela sobra de ossos num açougue em Cuiabá (MT). Mais de 19,3 milhões de trabalhadores brasileiros passam fome nos dias que correm.
A classe trabalhadora confronta-se com um cenário em que a burguesia opera um corte geral nos salários, e para dispor ainda mais os trabalhadores às péssimas remunerações também uma devastação no campo dos direitos trabalhistas. A Reforma Administrativa é mais um passo nessa direção. Na medida em que ataca a remuneração dos servidores da ponta dos serviços públicos e torna seus vínculos precários, ela possibilitará rebaixar ainda mais os patamares salariais de todos os trabalhadores devido ao balanceamento das pressões sociais e sindicais. Há um efeito geral de aumentar a competição entre os trabalhadores: na medida em que os servidores se tornam empregados, perdem a estabilidade e passam a concorrer diretamente com o conjunto dos trabalhadores. Mas, há também um efeito político para o conjunto dos trabalhadores com o rebaixamento do patamar salarial geral – e isso inclui todas as formas de renda direta proveniente do trabalho, e ainda todas as formas indiretas pelas quais a renda das famílias se realiza, incluindo-se aí as políticas sociais (saúde, educação, previdência, segurança, habitação, saneamento).
Lembremos que há uma agenda operada pela classe dominante contra as condições de vida e os salários dos trabalhadores. A Reforma da Previdência, aprovada em 2019, cumpriu um papel nefasto de liberar o fundo de vida dos trabalhadores para a dinâmica de reprodução dos capitais. Sua aprovação significou uma apropriação enorme de recursos do trabalho, e para cada um dos trabalhadores uma diminuição da capacidade de repor sua força de trabalho – pois note-se muitos trabalhadores aposentados dependem de suas aposentadorias e às complementam trabalhando informalmente em condições precárias.
É também neste espectro que a classe dominante aprovou em 2017 a Reforma Trabalhista. E deu-lhe continuidade agora em 2021, com a minirreforma aprovada no Congresso, pela via da Medida Provisória 1045/2021. A “minirreforma” mira a juventude trabalhadora criando um novo regime de contratação com enfraquecimento dos vínculos trabalhistas para aqueles que têm entre 18 e 29 anos, sob a justificativa imediata de flexibilizar as formas de contratos em tempos de pandemia.
Mas os ajustes realizados no campo do trabalho em nosso país ocorreram, como argumentamos, desde há muito. Um dos principais fatores que serviram para intensificar o ciclo de ajustes à classe trabalhadora brasileira foram os desdobramentos da crise mundial do capital de 2007/2008, desde então, em ondas sucessivas (2011, 2014, 2016, 2019), a economia nacional sofreu com enormes queimas de capitais e com a flutuação dos vetores de capitais estrangeiros. E, diferentemente de outros momentos históricos, a crise de 2007/2008 não encontrou ainda outra solução senão a externalização de seus custos para a classe trabalhadora.
No caso brasileiro, a “solução” provisória encontrada pelas classes dominantes é o ajustamento do padrão de reprodução da força de trabalho ao menor patamar de custos possível, com objetivo de atrair no mercado mundial um fluxo crescente de investimentos estrangeiros diretos. Assim, as classes dominantes (e, portanto, o Estado) agencia a concorrência internacional pelos menores preços a serem pagos pelo consumo da força de trabalho, implementando reformas, varrendo direitos, saneando as contas de capitais e oferecendos todas as benesses para a os grandes centros do capitalismo instalarem aqui suas filiais.
A “solução” das classes dominantes, contudo, não serve aos trabalhadores. Ela apenas aumenta as contradições, exportando parcelas crescentes da riqueza produzida em nosso país sob a forma de lucros e dividendos que serão exportados para os países sedes desses investimentos estrangeiros e, portanto, não participarão do ciclo da economia brasileira. A saída aos trabalhadores é necessariamente romper com as falsas expectativas populistas, identificando nos demais setores da classe (como os servidores públicos, os prestadores de serviços e outras frações sob ataques) aquilo que torna as suas pautas, lutas comuns de todos os trabalhadores.
A greve geral dos servidores públicos do dia 18/08, que envolve os servidores das três esferas e dos diferentes poderes, se coloca nessa direção. A luta contra a Reforma Administrativa é luta comum, seu objetivo não é salvar a pele de uma ou outra categoria, mas de resistir à investida dos capitais sobre a estrutura pública e a sua política de corte geral dos salários e direitos de todos os trabalhadores brasileiros. A greve pode ser um passo importante para alterar a correlação de forças e abrir o caminho para derrotar a Reforma Administrativa. Afinal, é a presença dos servidores públicos na luta política contra a reforma nas greves e atos que pode impor-se sobre o pavimentado caminho da classe dominante para aprovar a Reforma no Congresso Nacional.
Convite
Estes e outros pontos da Reforma Administrativa serão abordados no debate do dia 17/08, que ocorrerá às 18h, no canal da EFoP no Youtube. A Prof. Dra. Selma Venco tem realizado diversas pesquisas sobre a Nova Gestão Pública e seus impactos no serviço público, principalmente na área da educação. O espaço visa contribuir para as lutas que serão travadas contra a PEC 32/2020, sobretudo no dia 18/08, no dia da Greve Nacional contra a Reforma Administrativa. Faça sua inscrição no site da EFoP.
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