Opinião
Projeto do governo para destruir as universidades ou “Reuni Digital”
"Banco de aulas", universidade 100% digital e currículo comum são algumas das propostas
Há algumas semanas, o Governo Federal expressou com nitidez seu projeto para as universidades federais: o Reuni Digital. Neste, professores poderiam ser substituídos por plataformas digitais, cursos poderiam ter uma base comum curricular e “bancos de aulas” e laboratório virtuais resumiram a vida universitária. Em síntese, o projeto implicaria na reconfiguração completa do papel histórico da universidade.
A proposta recupera a tentativa falida de expansão de matrículas sem o crescimento correspondente no orçamento ou de estrutura (física, docentes, técnicos), tal como no Reuni (Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), lançado em 2007. Adiciona ainda um elemento mais nocivo: o aumento de matrículas via Ensino a Distância (EaD), o que descaracteriza radicalmente o que significa pensar o ensino hoje nas universidades públicas. Fica evidente nesta conjuntura como o Ensino Remoto apresentado como “emergencial” durante a pandemia está atravessando “a metamorfose da excepcionalidade”, tal como apontado neste jornal pela professora Carolina Picchetti do Departamento de Metodologia do Ensino do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina.
- Apontamentos iniciais
A motivação apresentada para o projeto é a necessidade de expansão de matrículas no Ensino Superior para atender às metas do Plano Nacional de Educação (PNE – 2014-2024), o Plano Plurianual e o Plano Estratégico Institucional. Segundo as metas do PNE, 40% das novas matrículas devem provir do segmento público. Chama a atenção o fato de que as instituições privadas de ensino estão, há alguns anos, expandindo suas matrículas por meio de mecanismos que destroem o processo ensino e aprendizagem, como a absorção do trabalho docente por plataformas digitais de avaliação/correção, a substituição das aulas por um banco de dados com gravações, entre outras formas de crescer matrículas sem fornecer a infraestrutura e qualidade necessária ao aprendizado, bem como boas condições de trabalho docente. Na prática, visa-se apenas aumentar os ganhos das privadas pela via do crescimento da proporção do número de alunos por professor reduzindo assim, os custos dessas instituições.
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Se estão colocadas tais metas às instituições públicas, por meio do acompanhamento proporcional ao número desastroso das matrículas nas privadas, quais custos inerentes a esse processo também estão sendo impostos à dinâmica das universidades públicas?
A universidade tem o direito, por princípio, de resguardar sua autonomia frente a qualquer Governo e, sobretudo, ao Estado. Planos anuais, plurianuais, metas de governo, entre outros, em nada deveriam interferir na vida universitária. Deve-se respeitar o princípio da autodeterminação e do autogoverno próprio dessas instituições. É por isso que sua estrutura administrativa conta com elementos complexos como colegiados e conselhos, e com figuras como os reitores. Esses últimos, contudo, parecem estar mais ao lado do Estado do que das instituições nas quais foram eleitos (quando eleitos) para dirigir. Pois, ainda que muitas reitorias estejam sofrendo uma brutal intervenção, visto que já são diversas reitorias impostas pelo Governo Bolsonaro, pouco se nota a diferença nos posicionamentos da parcela que fora eleita no último período para os reitores interventores.
Essa posição fica evidente nos sujeitos políticos envolvidos na elaboração do projeto do Reuni Digital. Fazem parte a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o Conselho Nacional de Educação (CNE) e a própria Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Também participou da estruturação do projeto o Grupo de Trabalho instituído pelas Portarias Sesu/MEC n˚ 434/ 2020 e n˚ 433/ 2020. Essas portarias, apresentadas em outubro do ano passado, deixaram evidente como a pandemia foi usada como um momento oportuno ao Governo para impor e acelerar este projeto.
O principal desafio, segundo o projeto, seria que os “profissionais da área da educação” – e chama a atenção o fato de que se utiliza uma linguagem mais próxima dos termos do mercado de trabalho do que das próprias universidades – “consigam compreender que a EaD é fundamental para que o país consiga ofertar cursos de nível superior com qualidade e que ela não seja apenas um formato desvinculado das ações atuais das IFES, mas que faça parte do cotidiano destas instituições, atendendo demandas locais e regionais” (p. 10). Se os professores seriam uma barreira ao projeto, evidencia-se, ao longo do texto, um forte apelo à readequação da força de trabalho docente a esses padrões.
- O projeto e suas metas
As Metas de Gestão apresentam as necessidades de estabelecer determinados marcos regulatórios e conceitos de qualidade que permitam essa expansão. Na prática, esse ponto visa colocar novos parâmetros para tornar o EaD tragável do ponto de vista da qualidade. Isso porque é evidente o prejuízo pedagógico deste modelo de ensino. Por isso, o projeto já prevê mecanismos de adequação ideológica por parte dos técnicos, professores e estudantes ao Reuni Digital.
A proposta prevê a construção de um documento orientador para a “Institucionalização da Educação a Distância nas IFES”. Utilizaria-se como inspiração a Universidade Aberta do Brasil (UAB), universidade estadual criada em 2005 que oferece seus cursos na modalidade a distância.
Além disso, o projeto visa não apenas estudar novas formas de incorporar o EaD nas IFES, mas também de realizar uma diretriz curricular comum nacional para os cursos superiores, apagando a drástica diferença em termos de qualidade e experiências dos cursos presenciais e online. Este ponto, novamente, ataca a autonomia dos colegiados. Este pode, por exemplo, colocar fim às discussões curriculares amplas nos cursos, à possibilidade de estudantes discutirem e propor mudanças aos currículos, entre outros.
Outro aspecto ligado a essa meta é a elaboração de um documento para nortear a flexibilização dos currículos, criando um currículo mínimo. Este, por sua vez, facilitaria a mobilidade em cursos e processos de intercâmbio.
Um dos eixos fortes desse governo é o projeto de subserviência ainda mais intensa do país às exigências dos capitais e contra qualquer projeto soberano de nação. A internacionalização, que já apareceu como um elemento no projeto do Future-se em 2019, expõe o projeto do Governo para as universidades e para os brasileiros: um projeto de submissão completa aos interesses externos. Os projetos de internacionalização constituem o que se costuma chamar de “fuga de cérebros”, ou seja, da absorção pelas economias de capitalismo centrais de pesquisadores relevantes para a produção científica.
Mais uma vez a autonomia universitária é tolhida. A determinação dos currículos e da formação não deveria ser alvo de políticas públicas do Estado. Já lidamos no espaço universitário com ingerência dos projetos profissionais, interesses privados, demandas do Estado, entre outros. Uma tentativa tão direta de incidir os termos dos currículos de formação resulta ser extremamente deletéria para a potência de formação crítica ainda passível de disputa na universidade.
Outro eixo apresentado no documento diz respeito à sustentabilidade financeira para a execução do projeto. Conforme apontamos, tal como na versão do Reuni de 2007, a expansão pretendida pelo Reuni Digital se dá com base em baixíssimo orçamento. Parte do investimento previsto alimenta os anseios dos capitais de ensino voltados para a expansão de ferramentas tecnológicas – os quais são os verdadeiros autores por trás de toda essa proposta. Por isso, há a previsão de modificação dos processos pedagógicos com a inserção de recursos tecnológicos.
O programa também aponta para a possibilidade de criar uma “universidade federal 100% digital”. Neste ponto fica evidente a transformação radical do sentido histórico da universidade vinculada no Reuni digital. Como proporcionar uma experiência universitária em plataformas digitais? Isso não é possível em nenhum aspecto. A universidade não é uma instituição que apenas transmite conteúdos. A experiência universitária envolve a socialização nos espaços – incluindo atividades culturais, de lazer, esportivas, entre outras -, a possibilidade de transitar pelos diversos Centros de Ensino por curiosidade ou interesse específico, a facilitação do debate político nas instâncias universitárias – como colegiados, conselhos e assembleias – e nos espaços do movimento estudantil – como Centros Acadêmicos, reuniões ampliadas. Não à toa, a moradia estudantil e o Restaurante Universitário (RU) são pautas tão caras ao movimento estudantil. Ambas as políticas são fundamentais para garantir ao estudante o exercício de livre trânsito nesses espaços. E é isso que permite, em larga medida, viver a universidade em sua integridade e que torna este momento da vida tão distinto do que se vive no Ensino Médio. Estes espaços que não conformam os limites dos conteúdos de sala de aula também são extremamente formativos.
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Espera-se, com o projeto, o crescimento de 2,7 milhões de vagas nas IFES a longo prazo (de 15 a 60 meses). O aumento das matrículas seria acompanhado pelo monitoramento do Sistema de Informações Integrado de Educação Superior (SIIES).
Uma questão central do projeto, conforme apontamos, é o esforço político pela aceitação do EaD e pela adequação a este modelo por parte da comunidade universitária. Para isso, há uma política de “valorização dos Recursos Humanos da EaD”. O processo consiste tanto no estímulo à docência online para todos os cursos de licenciatura (conformando a formação de futuros professores) e adequação dos currículos a essa estrutura. Ademais, incentiva-se a regulamentação do estágio docência na graduação e pós-graduação na modalidade a distância. Também busca-se estudar a necessidade de concurso público para a reposição docente, mirando no curto prazo, na conformação da força de trabalho ao EaD. Por fim, aos já em exercício, há previsão da regulamentação das horas de trabalho “na universidade presencial” para os docentes envolvidos em cursos a distância.
Uma das metas mencionadas é atingir um mínimo de 50% dos docentes das IFES participando de atividades no formato online. Além disso, o próprio texto evidencia o projeto de aumento no número de alunos por professor, ao mencionar uma quantia mínima (18 alunos/docente) para realização de disciplinas. Como se sabe, as turmas com um número muito elevado de alunos costumam prejudicar a dinâmica da sala de aula, podendo dificultar que o professor acompanhe o desenvolvimento de cada discente ao longo da disciplina. Esse processo é ainda mais evidente no EaD, em que as turmas com diversos alunos costumam resultar em câmeras fechadas ao longo de toda a aula.
No prazo de cinco anos, almeja-se que docentes e tutores – alunos de pós-graduação que substituiriam os professores – tenham concluído o curso de formação para o EaD.
Esta formação envolve também a administração do Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), que seria vinculado ao Moodle. Este último já vem adequando há alguns anos as universidades ao formato online de ensino.
No tocante aos estudantes, as metas de gestão prevêem, ainda, o fomento da política estudantil para garantir direitos aos estudantes em situação de vulnerabilidade econômica. A tentativa de garantir a “permanência” é bastante próxima ao que as universidades adotaram durante o ensino remoto, estabelecendo parcerias público-privadas para arrecadar recursos e garantir conectividade, infraestrutura e estágios a esses estudantes. Além de mascarar o que de fato significa a permanência estudantil – que diz sobre a universidade garantir o direito e prover o que for necessário para todos (as) os (as) estudantes cursarem seus cursos com máximo de qualidade -, resume o debate ao acesso à internet. Conforme apontamos neste jornal, o índice de evasão durante o Ensino Remoto tem sido alto. Na UFSC, 1 em cada 7 estudantes evadiram.
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Também compõe a política estudantil o fomento às pesquisas na área de inovações educacionais, ou seja, o estímulo para que a formação de estudantes esteja voltada para a expansão de projetos na perspectiva formativa proposta pelo Reuni Digital.
Outra questão bastante sensível é o plano de realizar um levantamento que recolha as demandas profissionais em cada região e direcione as vagas das universidades para supri-las. Isso significa a realização do que temos lutado a anos em diferentes frentes: a completa submissão da universidade às demandas de mercado.
As metas pedagógicas prevêem uma “educação superior aberta”: um currículo nacional único nos cursos com conteúdo compatível e carga horária que facilite a mobilidade estudantil. Já criticamos o significado dessa padronização anteriormente neste texto. Outro ponto é a “americanização” de nossas universidades, com a possibilidade de cursar um ciclo básico de um ano para que o estudante opte qual área quer seguir. As notas deste primeiro ano poderiam ser usadas como critérios de seleção. Aqui fica exposto o projeto falsamente democrático de universidade previsto no Reuni Digital. A ideia, na verdade, consiste em torná-la mais meritocrática do que já é a permanência dos estudantes.
Nas metas tecnológicas há a proposta de criar plataformas integradas de EaD em nível nacional, integrando o AVA ao Moodle para a oferta de cursos. Haveria, neste modelo, a criação de um “portfólio discente” para registro de créditos. A ideia de um “portfólio” parece distanciar do que significa a trajetória em diversas disciplinas que se encadeiam e se relacionam entre si e resultam – ou deveriam resultar – em uma formação crítica.
Um ponto extremamente sensível dessas metas é a criação do que tem sido chamado de “banco de aulas”. O projeto prevê a regulamentação do uso de um repositório público de materiais didático-pedagógicos e laboratórios virtuais. Na prática, isso significa que tanto professores como as estruturas importantes das universidades serão substituídas pela “experiência virtual”. Foi às custas de mecanismos como estes que a expansão precária e geométrica das matrículas nas instituições privadas se deu.
Das metas, o Reuni Digital coloca um ponto sobre a missão de gestão das IFES. Nesta fica evidente a busca por aliados no interior da universidade para impor este projeto, buscando parcerias nos órgãos colegiados e comissões internas. Há também a previsão de desenvolver o Ensino Híbrido a depender do curso/demanda regional.
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É curioso o fato de que a proposta prevê a inclusão no modelo digital dos discentes nos espaços colegiados. Longe de representar “maior inclusão”, significa na verdade uma tentativa de desmobilização do movimento estudantil, que depende em larga medida dos espaços presenciais para conseguir promover mobilizações mais intensas e marcantes. Na UFSC, esta proposta já tem sido apresentada em uma Resolução Normativa para a pós-graduação, o que tem gerado mobilizações no movimento estudantil.
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Está previsto, ainda, o estímulo a estudantes do EaD para participarem de ações de extensão e pesquisa, descaracterizando ambos os eixos.
Além disso, há um ponto preocupante apresentado e que tende a ser assimilado como positivo por parte da comunidade universitária. Este, diz respeito à elaboração de consórcios para o compartilhamento de redes e cursos na modalidade a distância. O Reuni Digital visa tornar positiva a presença virtual de professores e palestrantes oriundos de diversas localidades. Contudo, essa frágil solução responde à falta de orçamento que têm, há alguns anos, dificultado ou até mesmo impedido a realização de eventos e palestras com professores externos.
Já na missão pedagógica prevê a realização de uma reforma curricular, apontando para uma abordagem pedagógica de qualidade no EaD. Como tem demonstrado o Ensino Remoto, essa experiência online prejudica a apreensão de conteúdos complexos e impede a realização de certos processos que contribuem para a assimilação das matérias, como debates e discussões e o encontro com colegas para realizar estudos. Ademais, há a proposta de tornar o EaD “inclusivo”, com a ideia de fazer uma recepção e integração entre os estudantes. Além de apresentar a posição cínica já criticada neste texto no tocante à ideia do “EaD inclusivo”, o projeto deixa evidente a tentativa de inviabilizar o movimento estudantil, já que a recepção e inclusão de estudantes compõem as políticas de Centros Acadêmicos e Diretórios Centrais.
Há também o apelo à “flexibilidade temporál e tecnológica”, o que parece evidenciar a adequação da formação universitária ao modelo de acumulação flexível que atualmente mantém o padrão de reprodução do capital.
A ideia central para conformação ideológica docente é formar professores e tutores com um novo modelo pedagógico, direcionando a oferta de disciplinas e de avaliações pedagógicas que garantam essa formação.
Para aproveitar as aberturas já disponíveis nas universidades, o projeto também propõe o estímulo e aprofundamento à utilização dos 40% de virtualidade já permitidos por lei nos cursos presenciais.
Em síntese, esse projeto ataca desde a formação dos professores – atuais e futuros -, a carreira docente e dos técnicos, a liberdade de cátedra, os mecanismos que ainda permitem o exercício da autonomia universitária, a formação crítica de estudantes, o movimento estudantil e a experiência universitária em seu sentido amplo. O Reuni Digital, pretende, com esses mecanismos, alterar o sentido histórico das universidades públicas e transformar completamente o que, há pouco tempo, conhecemos e experienciamos. O Reuni Digital sintetiza, mas não circunscreve, os ataques substanciais que as universidades públicas vêm sofrendo. Por essa razão, ou as universidades unem forças contra esse desmonte, ou sua estrutura estará, em pouco tempo, completamente alterada.
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