Os estudantes do curso de Design da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) vêm vivenciando, há anos, as consequências de parcerias íntimas com empresas privadas. A consequência para a formação acadêmica é de um currículo extremamente atrelado à formação para o mercado de trabalho.
Nesta semana, o UFSC à Esquerda conversou com estudantes e representantes do Centro Acadêmico de Design e Design de Produto (CADe) para compreender melhor a situação e trazê-la ao debate público e político.
Os estudantes relataram que a parceria com empresas privadas no curso não é de hoje, mas que houve um aumento na sobrecarga de trabalhos durante o período de ensino remoto. Devido aos semestres reduzidos e falta de diálogo com o corpo docente, o problema se potencializou.
Nas últimas semanas, circulou pelas redes sociais denúncias de estudantes indignados com a intensificação da lógica empresarial no curso. Os estudantes denunciaram o uso de alunos como mão de obra gratuita para empresas em convênio com o curso.
“Temos metas a serem conquistas”, explicou um professor a estudantes em um grupo de WhatsApp. Segundo o docente, naquele projeto em vínculo com uma empresa “não existe fim de semana, feriado ou folga”.
Print de conversa de professor com grupo de alunos do Design da UFSC. Fonte: Reprodução.
No curso de Design da UFSC, a partir do quarto semestre o currículo se organiza por Projetos, trabalhos em que há a relação direta entre o corpo estudantil e as empresas privadas. Essa prática de intensas parcerias ocorre há pelo menos mais de seis anos no curso, segundo relato de estudantes.
O design na UFSC é dividido em dois cursos: Design de Produto e Design Gráfico.
Segundo relatado, em ambos os cursos a tradição é que uma empresa encomende um produto e que os estudantes compitam entre si durante o semestre para ver qual agrada mais à iniciativa privada interessada no resultado.
Ou seja, a produção dos projetos não gira em torno de pautas acadêmicas, mas dos interesses empresariais. E a forma de avaliação da disciplina muitas vezes é rebaixada a uma forma de hierarquização entre os projetos, ao gosto da empresa contratante.
Essa foi uma das principais queixas apresentadas pelos estudantes com quem conversamos, de que já tiveram seus trabalhos avaliados não por critérios acadêmicos, mas sim pela preferência dos clientes. Ao ponto de que, para passar nas disciplinas de determinados projetos, eles relatam tristemente que não precisam estudar, mas sim agradar empresas e determinados professores associados a essa lógica.
Realidade instantaneamente associada pelos estudantes a uma perda do sentido da Universidade, por compreenderem que esta tem como dever a produção de conhecimento.
A regra geral no curso de Design tem sido a priorização de uma prática, pautada na formação para o mercado de trabalho, em sobreposição a produção de pesquisa e conhecimento científico autônomo.
“A rigidez que necessitamos, é a rigidez acadêmica. Enquanto a rigidez que os professores nos cobram é a do mercado de trabalho”, denunciou um dos estudantes.
O universitário criticou a lógica e relação que tem se estabelecido entre o corpo estudantil e grande parte do corpo docente.
A crítica, compartilhada pelos demais estudantes entrevistados, é de que os professores têm tratado o corpo discente como funcionários, introduzindo-os em uma lógica descolada da universitária e colocando-os para trabalhar de graça para empresas vinculadas a alguns laboratórios e professores do curso.
Sobre isso, os estudantes apontaram inclusive que o canal das empresas e instituições privadas têm sido professores demarcados, e não uma lógica do curso como um todo. Pelo menos não por enquanto.
Há professores que têm historicamente servido como canal para o empresariamento do curso. E são justamente esses os que possuem mais poder dentro do departamento, devido a verba privada que os garantem.
Além disso, os estudantes apontam que aqueles professores que se propõem a pensar questões de cunho social e a construir uma formação mais crítica para o corpo estudantil tendem a ser isolados no departamento. O que expressa problemas nas relações dentro do próprio corpo docente.
Um exemplo trazido pelos estudantes para demonstrar como as escolhas de determinados docentes vêm descaracterizando o currículo, foi um dos módulos de disciplinas oferecido pelo curso de Design, no qual tiveram a possibilidade de realizar o projeto com instituições públicas, como o Núcleo de Desenvolvimento Infantil da UFSC (NDI), o Museu de Arqueologia e Etnologia da UFSC (MArquE UFSC) e o Centro Integrado de Cultura (CIC), porém conforme diferentes professores assumem a disciplina esta passa a ser realizada em parcerias com empresas privadas — não sendo uma regra geral do curso.
Como uma peça importante na construção da relação do curso de Design com empresas, os estudantes citaram também o CocreationLab, que opera como uma incubadora de empresas no centro de Florianópolis.
Como há parceria desse laboratório com a prefeitura de Florianópolis, os estudantes relataram que se vende uma ideia falsa de que há ali um interesse de caráter público, mas que a realidade vivenciada é a de professores que levam os estudantes para dentro do CocreationLab para trabalhar de graça a serviço de empresas, sem retorno para a cidade e a universidade.
Um outro exemplo citado, porém dessa vez de um Laboratório dentro da própria universidade, foi o Laboratório Logo. Um laboratório bastante renomado dentro do curso que pesquisa e cria novas referências em branding (estratégia de gestão da marca de uma empresa).
De acordo com os estudantes, é a partir desse laboratório que se constrói boa parte das relações com startups e empresas de tecnologia e inovação. Além de se adotar e transmitir aos estudantes, nesse espaço, uma lógica cegamente empresarial.
Formação para o mercado de trabalho
A profissão de Design, no Brasil, é uma profissão ainda não regulamentada, de forma que aqueles que trabalham no ramo ficam ainda mais à mercê da precarização do trabalho autônomo, de uma inserção da lógica empreendedora e de desvio de função. De acordo com os estudantes, essa é a lógica que os professores têm buscado replicar também no curso.
“Trabalhamos como uma empresa de verdade. Trabalhando noite e dia, sem fim de semana”, relatou um estudante.
Segundo ele, os estudantes têm vivenciado uma rotina que os acarreta problemas psicológicos e físicos em nome de uma formação para o trabalho precarizado.
Com essa concepção empresarial do que é um curso de graduação dentro da universidade pública, os estudantes comentam que se perde o papel da ciência, e no caso específico deles, da ciência da comunicação.
A ciência da comunicação fica secundarizada ao ponto que se prioriza a inserção no currículo de habilidades que um designer precisa ter para ser um bom trabalhador, inclusive de questões que sequer dizem respeito ao trabalho de designer, como a inserção da produção de marketing.
“Somos agentes de comunicação, não agentes de venda”, denunciou um dos estudantes.
Eles se queixam de não terem, durante o percurso formativo de forma integral, um debate aprofundado de teorias das ciências sociais.
Os estudantes defendem que, diante deste cenário, é preciso parar de normalizar que estão ali para trabalhar, mas sim para estudar; parar de normalizar a entrada das iniciativas privadas na universidade pública, que corrompem o seu sentido; e urgentemente parar de vender o mercado de trabalho.
E colocam a seguinte questão: “formação de cidadão é formação de trabalhador?”.
Eles retomam que o papel da universidade é produzir conhecimento crítico e que a perda desse sentido, inclusive, contribui para a manutenção da cada vez maior precarização do trabalho.
“Não temos nenhum incentivo a atividades acadêmicas, pesquisa e extensão”, comentam.
Eles também relatam o exemplo do RD Summit, para o qual são levados inclusive pelo Laboratório Logo. Os estudantes brincam que esses eventos chegam a se assemelhar a uma seita, no sentido da venda que há de uma lógica irracional de se relacionar com o mundo.
“Os únicos eventos que vamos pelo curso são de empreendedorismo, de tecnologia e de empresas”,
Ainda sobre isso, comentam sobre a lógica que tem se de maquiar a precarização no ramo do design através de espaços de trabalho com sinucas, puffs e post-its coloridos.
Além da utilização de pautas sociais no ramo do marketing apenas como via de manter lucro. Falam do perigo de essas questões passarem a ser normalizadas também dentro do curso de design e da universidade.
Para além de um incentivo do corpo docente na inserção dessa lógica no curso, os estudantes citam também o perigo de haver dentro do próprio corpo estudantil uma parcela que apoie essa nova lógica empresarial, algo que ocorre sobretudo através das Empresas Juniores (EJ). Apontam a diferença que há entre estudantes que apenas se implicam em pensar o mercado de trabalho e aqueles que se lançam a pensar na importância de projetos que contribuem com o avanço da sociedade.
Relação com o corpo docente
Na conversa com o UFSC à Esquerda, os estudantes defenderam que o papel de um professor é instigar os seus estudantes, convidando seus professores a fazê-lo e a reconhecerem seu papel com o coletivo. Eles colocam que isso deve sempre estar acima de quaisquer interesses particulares e de preocupações que os professores venham a ter com suas próprias empresas.
Apontam que as relações com o corpo docente no Design têm sido no mínimo espinhosas, quando não violentas. Sobre isso, citam como exemplo os casos de racismo no curso por parte de professores que “se escapam” de se a ver com isso politicamente, ancorando-se nos postos que ocupam hierarquicamente e no corporativismo dos professores.
Devido a uma nota antiracista publicada pelo Centro Acadêmico, um professor chegou a abrir um Boletim de Ocorrência (BO) contra a ação da entidade.
Como um exemplo a ser seguido, os estudantes apontaram professores que buscam construir grupos de estudos e realizar eventos que condigam com o anseio dos estudantes por uma formação mais íntegra e crítica. Colocam a importância da prevalência de uma prática docente mais atrelada a esses princípios.
Nos laboratórios, ainda que se sobressaiam aqueles de cunho empresarial, os estudantes relatam que há um respiro por exemplo no Lab Dat, Laboratório Transmídia da UFSC que atualmente desenvolve o projeto Casa Purpurina. Todavia, apontam que esse é, não coincidentemente, um laboratório que não possui grande investimento dentro do departamento, expressando a forma como os projetos e laboratórios que se propõem a pensar questões sociais são esmagados dentro do curso.
Por fim…
Os estudantes insistem nos riscos que corremos, dentro da universidade pública, com a inserção desenfreada da iniciativa privada, mas não apenas.
Apontam que para além dessa relação mais direta, é preciso estar atento à inserção da lógica empresarial na própria formação, a qual desvirtua o sentido dos currículos e poda os horizontes que são possíveis para os estudantes.