O gado, a vacina e as “vantagens comparativas”
Diante de uma pandemia que oficialmente já matou mais de 250 mil pessoas e cresce em ritmo assustador, um dado alarmante foi trazido recentemente por reportagem da BBC Brasil[1]: o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal (Sindam) afirma que “mais de 90% das vacinas para gado são fabricadas no país” em cerca de 30 fábricas, garantindo autossuficiência, ao passo que temos apenas duas fábricas nacionais de vacinas para uso humano atendendo às demandas dos planos nacionais de imunização via SUS – Fiocruz/Bio-Manguinhos e Instituto Butantan.
Em artigo publicado por três pesquisadores da Fiocruz, por sua vez, vemos que:
Há 20 anos, o Brasil produzia 50% de seus insumos para vacinas. Hoje o percentual é de apenas 5%. É evidente que não houve uma política de investimentos adequados para desenvolver esse setor crucial para um país de dimensões continentais e mais de 210 milhões de habitantes. É evidente que a ordem de prioridades políticas e econômicas, seja ela qual for, terá de ser alterada para garantir que não ocorra desabastecimento de insumos para a produção de medicamentos ou de vacinas.[2]
Voltando um pouco no tempo, para 2003, outra avaliação feita por especialistas reconhecia os avanços da área de imunização no Brasil e também da capacidade científica disponível, mas apontava para um quadro que chamavam de “dependência estrutural”:
[…] o programa de imunização ainda se ressente da dependência de importações de produtos essenciais, seja na forma de produtos finais ou de concentrados de antígenos virais ou bacterianos […], tais como as vacinas contra Haemophilus influenzae tipo b (Hib), gripe tríplice viral (sarampo, rubéola e caxumba) e meningites que apresentam elevado conteúdo tecnológico e relevância social destacada, agregando os recentes avanços da pesquisa biotecnológica.[3]
Hoje sabemos o que foi feito com essa capacidade produtiva que, desde o início do milênio, já demonstrava sinais de sucateamento. O neoliberalismo fez muitos estragos na indústria brasileira, sobretudo nos setores mais intensivos em tecnologia. Não foi diferente com a produção de vacinas. A virada, contudo, já vinha sendo gestada ao menos desde o golpe de 1964 e a contrarrevolução da Ditadura. Setores da classe dominante que porventura nutriam pretensões de autonomia nacional não resistiriam à crise e a reestruturação da acumulação capitalista no último quartel do século XX, ao passo que a classe trabalhadora organizada foi reprimida pelo regime. A produção científica e tecnológica, parceira indispensável de qualquer projeto de autonomia, também foi sendo reorganizada nesse sentido conservador. Não precisava ser destruída, mas principalmente enquadrada.
Eis que chegamos a 2021. Nos primeiros momentos da pandemia, quando ainda pouco se conhecia sobre o Sars-cov-2 e as tendências da Covid-19, especialistas da área da saúde alertavam que seria pequena a chance de uma vacina ser desenvolvida no curto prazo. Alguns chegaram a dizer que seria um “milagre” se tivéssemos uma alternativa ainda em 2020 e é bem provável que, mesmo recorrendo ao misticismo, ninguém estivesse pensando em vacinas desenvolvidas aqui.
Quando veio a público a vacina, muitos se esqueceram que milagres não existem: uns pela empolgação, outros por má-fé mesmo. Numa grotesca combinação dessas duas, vimos estampada na capa da revista Isto é do final de janeiro, a foto de um presunçoso João Dória com o título: “Chegou a vacina brasileira pela persistência de um homem”, completado em seguida, no subtítulo, com o acréscimo de que ela havia sido “trazida para o país”.
Outras vozes, como a de Delfim Netto[4], um dos arautos da Ditadura, têm apresentado a vacina como “salvação”, colocando toda a ênfase nas formas de aquisição e distribuição da mesma, somando-se ao que parece ser um esforço deliberado por fazer com que o que deveria ser visto como problema (para o qual se produz soluções/respostas) seja visto apenas como solução (compra de algo pronto).
Uma linha tênue separa aquilo que, de um lado, se expressou como empolgação pelo início da vacinação nos discursos midiáticos, e aquilo que, de outro, empolga outros setores (também presentes na mídia hegemônica) que exaltam o fato de termos instituições como Butantan e Fiocruz para garantir a produção de vacinas. A celebração pela “vitória” da vacina em tempo recorde oculta os problemas estruturais que nos afetam nesse quesito e que, como temos insistido, nos fazem estar melhor situados na produção para o gado do que para humanos.
Vozes críticas, por sua vez, dizem que poderíamos ter feito diferente. É o caso da professora, pesquisadora da área da saúde e reitora da Unifesp, Soraya Smaili, que aponta a falta de uma política específica para que vacinas locais fossem desenvolvidas[5] e fala na possibilidade de quebrar patentes. De fato, informações pouco divulgadas pela imprensa e pelo governo durante a pandemia, dão conta de várias vacinas sendo desenvolvidas por instituições nacionais, mas em ritmo lento e não necessariamente com autonomia plena.[6]
Mas a dúvida que permanece é: quando nos perguntamos se poderia ter sido diferente, podemos desconsiderar as razões de fundo que estão por detrás dessa condição, para além de um governo desastroso e genocida e um ministério da saúde obtuso? Isso nos leva a outra dimensão do problema, que é a reprodução sistemática da dependência. O que faz com que países como o Brasil se mantenham em sua condição dependente também é um projeto político consistente e conivente com esse status quo; que precisa da mão forte do Estado e das classes dominantes para mantê-lo vivo[7], sobretudo em períodos de crise.
O caso da vacina é significativo pois evidencia que, além das questões técnico-científicas que hoje nos afastam das pretensões de ter autonomia nessa produção, há também uma disputa no campo ideológico, que busca ocultar os fundamentos dessa relação estrutural de dependência. Em um contexto como esse, não surpreende que o presidente do IPEA, órgão de governo que produz estudos e pesquisas na área econômica, tenha vindo a público declarar[8] que o Brasil deveria deixar de investir na indústria para se especializar naqueles setores (agro e extrativistas) em que tem “vantagens comparativas”. Recorrendo a uma velha tese do século XVIII, o expert do governo não teve qualquer pudor em fazer tal afirmação quando enfrentamos um dos maiores dilemas que a dependência estrutural nos impõe, que é não ter condições de produzir os bens elementares na garantia da sobrevivência.
Apesar da dramaticidade da pandemia e de uma vagarosa vacinação, há pouco espaço para o debate sobre as razões de não termos autonomia nesse setor. A anunciada promessa de transferência de tecnologia, além de ainda pouco esclarecida, em nada ameniza a situação, o mesmo ocorrendo quando se tenta reduzir o problema àquilo que envolve as negociações entre governos e laboratórios ou a burocracia da Anvisa.
A tal ‘corrida’ pela vacina pode ter tido especificidades no caso da Covid-19, mas não se deve supor que estamos diante de um processo cooperativo e harmonioso como, por vezes, a mídia tenta fazer parecer. Trata-se de competição, envolvendo interesses econômicos de grandes laboratórios, a geopolítica global, o comércio internacional, para dizer o mínimo.
Do nosso ponto de vista, é preciso fugir do que pode vir a ser uma falsa polêmica: sabemos que o Brasil tem uma indústria e setores de pesquisa (formados por universidades públicas, institutos, laboratórios e fundações como o Butantan e a Fiocruz, todos mantidos por dinheiro público) capazes de nos projetar de forma autônoma na produção de vacinas. A questão é entender como é que essa capacidade vem sendo, há décadas, (i)mobilizada para atender aos interesses dominantes nesse projeto de país; que, tendo ou não capacidade, o padrão de acumulação contemporâneo no qual nos inserimos de forma subordinada, corrobora mais a fala do presidente do IPEA que os apelos das entidades científicas, instituições e movimentos da área científica em geral[9].
Dadas as condições estruturais de reprodução da dependência e da subordinação no âmbito da pesquisa científica e tecnológica no país, e após toda a experiência do ano de 2020, era previsível que estaríamos nesse momento diante de uma das maiores tragédias sanitárias da História, vendo as vacinas disponíveis, mas não ao alcance massivo da população brasileira. As recorrentes lembranças (ou lamentações), na imprensa e entre especialistas da área, sobre a competência e o reconhecimento internacional de que goza o país com seu programa de imunizações, praticamente não tocam nessas questões de fundo.
Estamos falando de, pelo menos, dois elementos estruturais combinados:
1) a reestruturação da economia brasileira das últimas décadas e seu forte acento desindustrializante, de re-primarização e especialização da produção, além da liberalização financeira. Processos que fazem com que o capital tenha, em nome da busca incessante por lucratividade, cada vez mais liberdade para transitar entre países e regiões, sem enfrentar os obstáculos de outrora, ademais, concentrando-se em escala inédita nas atividades não produtivas, como as do setor financeiro. Sem esquecer, porém, de suas necessárias combinações com os setores de onde se extrai o valor, via exploração da força de trabalho. Uma reestruturação, portanto, cuja finalidade é abrir ao máximo as porteiras para que a geração de valor seja ampliada, alimentando alguns poucos setores com “vantagens comparativas”, com tudo o que isso implica em termos de perda de direitos, retrocessos civilizatórios, intensificação do trabalho, quase sempre “amaciados” por discursos como o do empreendedorismo, do “faça você mesmo”.[10] Sem compreender essa configuração geral, fica difícil de explicar o papel do setor privado que, por vezes, é ingenuamente cobrado por não estar “fazendo a sua parte”.
2) o processo de desmonte/precarização das instituições públicas de pesquisa e produção científica, incluindo aí as Universidades e Institutos de pesquisa. Processo este que tem no subfinanciamento uma das suas principais formas de execução, mas vai além dele, com as políticas de fomento ao chamado “produtivismo acadêmico”[11], que segmentam as pesquisas a serem feitas, estimulando sobretudo aquelas de interesse mercantil. Que se caracteriza pela reordenação da lógica da produção científica no bojo da “inovação”, solapando as pesquisas básicas em diversas áreas, preservando, quando muito, aquelas em que as cadeias produtivas assim o exigem para países como o Brasil (vide o setor do agronegócio); e que entoa loas à “internacionalização”, sob o pressuposto ideológico de que o conhecimento não tem fronteiras, priorizando e reservando recursos para projetos vinculados a outras instituições fora do país, em temas e assuntos que quase sempre não são de interesses prioritários. Com uma produção científica orientada hegemonicamente pelo produtivismo internacionalizante, conhecimentos voltados para o direito à saúde pública, para o aperfeiçoamento do SUS, para uma maior autonomia nacional na produção de vacinas, não têm a menor chance de prosperar. Por isso, nessa pandemia, acabamos nos posicionando antes como “campo privilegiado de testagem” [12] do que como protagonistas no desenvolvimento das vacinas.
Alguém se surpreende que um dos grandes temas em discussão hoje no país – o auxílio emergencial – esteja sendo tratado pela “equipe econômica” na base de explícita chantagem fiscal? E que, também nesse sentido, se esteja propondo hipotecar os recursos constitucionais mínimos vinculados à educação e à saúde (PEC 186) em favor de interesses financeiros e especulativos?
A análise convencional que separa liberais (racionais, ponderados) de um lado, conservadores (irracionais, “ideológicos”) de outro, como campos opostos no governo, é pobre para elucidar os fundamentos do que estamos vivenciando. Ambos trabalham contra o combate à pandemia: um é grotesco, negacionista, cultuador da morte; o outro, lida diretamente com os fundamentos do problema, reproduzindo-os. Decisões vitais que envolvem a maioria da população brasileira são reduzidas a moeda de troca para aquilo que os economistas chamam de “gatilhos” fiscais, isto é, formas de evitar que quaisquer que sejam os problemas existentes (educacionais, sanitários, tragédias ambientais, etc.), não se possa mexer na rentabilidade do setor financeiro, credor dos títulos públicos e atrelado ao esquema da dívida pública. É isso que o ministro Guedes chamou, recentemente, de a necessidade de “pagar por nossas guerras”; e completou: sem onerar as gerações futuras com os encargos do endividamento. Ou seja, quis dizer com todas as letras: hoje ou no futuro, quem tem que pagar a conta é a população trabalhadora em geral, não a classe que ele representa, a qual cabe lucrar com a miséria alheia.
O que dá força política e respaldo a esse projeto dominante, portanto, é o modo como estes “campos” operam articulados, produzindo uma gestão adequada aos interesses que movimentam e lucram, desde sempre, com a reprodução da dependência brasileira. A prosseguir tudo como está, a ‘nova variante’ dessa bárbara composição deverá ser a abertura das porteiras para a comercialização das vacinas no setor privado, com flexibilização das já frágeis prioridades do “plano” nacional de vacinação. Uns poucos poderão ficar tranquilos: o ciclo vicioso da dependência e sua reprodução fazem com que, à semelhança de uma das cenas mais impactantes de Ilha das Flores[13], hoje tenhamos certeza de que, apesar dos milhares de óbitos ainda por contabilizar e sem perspectivas seguras de imunizar a maioria da população, para ogado “brasileiro” não faltarão vacinas. Enfim, são as tais “vantagens comparativas”.
[1] PASSARINHO, Nathalia. Brasil tem quase 30 fábricas de vacina para gado e só 2 para humanos. 24/02/2021. BBC Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56171059>. Acesso em: 01 mar. 2021.
[2] Paulo Buss, Claudia Hoirisch e Santiago Alcazar, Vacinas, Pantagruel e a diplomacia da saúde de Brics. 24/02/2021. Disponível em: <https://agencia.fiocruz.br/vacinas-pantagruel-e-diplomacia-da-saude-de-brics>. Acesso em: 25 fev. 2021.
[3] Carlos Gadelha; Nara Azevedo. Inovação em vacinas no Brasil: experiência recente e constrangimentos estruturais. História, ciência, saúde-Manguinhos, v.10, suppl.2, Rio de Janeiro, 2003, p. 699.
[4] Ver “Descrédito na vacina”, coluna publicada na Folha de S. Paulo em 19/01/2021.
[5] Ver em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/01/21/coronavirus-vacina-oxford-covishield-astrazeneca-reitora-unifesp-patente.htm
[6] Ver https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/02/vacinas-brasileiras-lutam-para-ir-alem-da-pesquisa-basica
[7] Na síntese feita por Eliane Brum, citando pesquisa em curso que revelou que o governo Bolsonaro executou uma“estratégia institucional de propagação do coronavírus”, tem-se uma ideia desse quadro geral. Publicada no El país em 21/01/2021 e disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html>. Acesso em: 25 fev. 2021.
[8] Entrevista ao jornal Valor Econômico, no dia 19/01/2021.
[9] Menciono aqui, a título de exemplo, a mobilização que engloba dezenas de entidades em favor da derrubada do veto presidencial aos dispositivos da Lei Complementar nº 177, de 13/01/2021, cuja consequência foi a supressão de recursos para investimentos em ciência e tecnologia. Disponível em: <https://agencia.fapesp.br/noventa-entidades-pedem-derrubada-dos-vetos-a-lei-do-fndct/35072/>. Acesso em: 25 fev. 2021.
[10] Sobre isso, sugiro a leitura da entrevista com Plínio de Arruda S. Jr. em http://www.ihu.unisinos.br/606560-a-crise-civilizatoria-brasileira-e-a-manifestacao-da-barbarie-como-razao-de-estado-entrevista-especial-com-plinio-de-arruda-sampaio-jr.
[11] Tratamos desse assunto na coluna publicada neste mesmo espaço em 20/11/2020.
[12] Ver https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54062707
[13] Curta-metragem dirigido por Jorge Furtado em 1989. Na cena mencionada, pessoas aguardam que os porcos se satisfaçam para conseguirem coletar, por alguns minutos, restos de alimentos provenientes do lixo (e também dos porcos da Ilha das Flores).
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