O patrocínio estatal na privatização da Petrobras
Imagem: colagem UàE.
No último 18 de fevereiro, a Petrobras anunciou o reajuste da tabela de preços dos dois principais carburantes de transportes, o diesel e a gasolina veiculares. Se efetivado, o reajuste faria o diesel e a gasolina vigorarem com preços nas refinarias de R$ 2,58/L e 2,49/L, representando altas de 14,6% e 9,9%, respectivamente. Essa foi a quarta alta consecutiva nos preços de combustíveis refinados apenas em 2021 – passados apenas 50 dias do ano. Desde o dia 1º de janeiro, o litro da gasolina acumula alta de 34,78% e o diesel de 27,72%.
Efeitos sistêmicos do aumento do diesel e da gasolina
O aumento no preço dos principais combustíveis impacta de forma sistêmica a economia brasileira, pois a situação de dependência do Brasil em relação aos centros capitalistas impôs ao país uma matriz de transporte e de logística centradas no transporte veicular de mercadorias, além da persistência de graves problemas urbanos. Todos os preços estratégicos que fazem parte da cesta de consumo dos trabalhadores são impactados diretamente pela variação do preço do diesel, pois dependem do transporte de média e longa distância por caminhões.
A ausência de uma política de transporte logístico inteligente e integrada, que priorize o transporte ferroviário e hidroviário em um país de proporções continentais e com extensas redes fluviais e marítimas, responde em larga medida pela dependência nacional dos carburantes. A isso se soma a inexistência de uma política séria de administração de preços dos alimentos, que atue para determinar uma matriz nacional de produção agrária, demarcando as regiões consideradas estratégicas para a agricultura familiar, a reforma agrária e o planejamento regional das safras. Uma política estruturada, nessa direção, deveria oferecer apoio técnico e financeiro para os pequenos agricultores situados nas regiões de abastecimento interno e punir todas as lavouras desviantes com aumento da carga tributária, tributação de suas operações financeiras e, nos casos mais graves, com a desapropriação de terras – como é praticado há décadas em todas as economias industriais fortes no mundo. Essa política necessariamente deveria ser acompanhada não apenas do reforço das insuficientes políticas que envolvem atualmente a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) e os programas de compras governamentais, como deveria estabelecer uma verdadeira base nacional de silos, capaz de controlar os preços estratégicos das proteínas e carboidratos de consumo da força de trabalho brasileira.
O que se tem atualmente é uma política absolutamente dominada pelos interesses estrangeiros. Ao invés de ampliar a política de abastecimento e controle sobre os preços dos alimentos, todos os governos da Nova República ampliaram o desmonte das políticas de armazenamento de alimentos e de controle sobre os preços finais da cesta básica. Em 2019, o governo Jair Bolsonaro deu sequência à estratégia traçada no governo Temer de desmonte da CONAB, com o anúncio da liquidação de 27 das 92 unidades de armazenamento mantidas pelo Estado.
Em 1990, o Brasil tinha 300 unidades de armazenamento cujo objetivo consistia, basicamente, em fornecer alimentos para a manutenção das políticas nacionais de segurança alimentar e do controle indireto sobre os preços básicos dos alimentos. Então, todos os governos da Nova República trabalharam para o desmonte do sistema de abastecimento, cedendo às pressões do capital agrário – que preza pelo patrocínio estatal, pelos financiamentos subsidiados e pelas isenções tributárias – e às pressões no mercado mundial exercidas pelo governo, em detrimento de intervenções diretas do Estado na economia com objetivo de conservar o fundo público nacional e os custos básicos da força de trabalho (Figura 1). Esse jogo opera pelo desmantelamento das indústrias de alta intensidade fabril, pois as pressões sobre os preços que impactam na vida das famílias brasileiras recaem sobre a força de trabalho tanto no lado da produção, quanto da capacidade de consumo das mercadorias em geral.
Figura 1 – Número de armazéns públicos no Brasil para a armazenagem de alimentos
FONTE: PERES; MATIOLI, 2021, s. p.
Efeitos diretos na apropriação de parcela da renda do trabalho
O aumento do diesel afeta de maneira imediata as categorias de trabalhadores do transporte de cargas, especialmente os autônomos. De acordo com os dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), estavam registradas no Brasil, em 2020, 209 mil empresas de transporte de cargas rodoviárias, 695 mil autônomos e 422 cooperativas. A frota brasileira é composta por mais de 2,2 milhões de caminhões, a maioria entre 8 e 29 toneladas de peso bruto total, com alto consumo de combustível – os autônomos correspondem a aproximadamente 837 mil caminhões e as cooperativas a quase 29 mil. A variação do preço do combustível achata a margem de remuneração direta dos autônomos, das cooperativas e das empresas menores, o que tem gerado um campo de tensões, tendo em vista a deterioração global das condições de fretamento de cargas, o aumento da insegurança nas estradas e a deterioração das condições gerais de vida das famílias brasileiras desde a crise de 2014. A política de preços da Petrobras se tornou tão agressiva para essa camada de trabalhadores, que o caminhoneiro que sai do Rio Grande do Sul para o Nordeste, numa viagem que pode durar quase 30 dias, pode sofrer dois ou três ajustes no preço do combustível antes de voltar para casa e descobrir que pagou para trabalhar.
Por sua vez, o aumento da gasolina tem efeitos imediatos no orçamento das famílias que possuem veículos, pois a composição final do preço na bomba de combustíveis depende da intermediação de diversos tipos de capitais. Os preços reajustados consecutivamente pela Petrobras dizem respeito ao preço da refinaria. Porém, entre o refino e a bomba de abastecimento, o preço da gasolina sofre diversas modificações: são nele incluídos o preço do Etanol Anidro, que corresponde a 27% do volume total da gasolina comum – e consequentemente incluem-se aí todos os capitais envolvidos na produção, no refino e na intermediação do etanol. Além do etanol, somam-se ao preço da gasolina as realizações de diversos outros capitais: as transportadoras, seguradoras, distribuidoras, os postos de combustíveis e, por último, os impostos: nos estados, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) e, no âmbito federal, a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), o Programa de Integração Social (PIS/PASEP) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS).
A dependência veicular na maioria das cidades brasileiras diz respeito à política de Estado que impossibilita o controle dos trabalhadores sobre a política de transporte urbano, favorecendo as indústrias de automotores estrangeiras que reinam no Brasil e que constituíram uma indústria ampla e complexa desde os anos 1950 às expensas do transporte público municipal e intermunicipal.
Também não se pode esquecer que, em razão disso, os veículos de transporte pessoal de passageiros se tornaram instrumentos de trabalho e deles dependem representantes comerciais, entregadores, bancários, técnicos de manutenção, fiscais, despachantes, motoristas e uma miríade de trabalhadores informais. Nas últimas duas décadas, cresceu a dependência de diversos setores do comércio de entregadores e motoboys, e a dinâmica aguçada pelos grandes capitais estrangeiros presentes na forma de aplicativos deixa às vistas a situação difícil de parcelas dos trabalhadores em todas as grandes cidades brasileiras e afeta a curto prazo o orçamento das famílias.
É possível estimar os entregadores de aplicativos em aproximadamente 5 milhões de trabalhadores informais, cujas rendas variam de R$ 1.040,00 a R$ 2.080,00 mensais, e que são inteiramente responsabilizados pelos capitais (muitos deles, estrangeiros) pelos custos da entrega – a gasolina é a despesa mais imediata e significativa desses trabalhadores a curto prazo.
O que justificaria a criação e a manutenção da política de preços da Petrobras?
A Petrobras atribui o reajuste tarifário à sua política de preços que atrela a matriz de precificação ao preço médio internacional do refino, aproximadamente US$ 80 por barril. Mantendo, portanto, uma dupla pressão sobre o preço dos dois principais combustíveis nacionais: o preço do barril no mercado mundial e a variação do dólar futuro frente ao Real. Sendo assim, desde 2016, a nova política de preços para os produtos refinados da Petrobras procura acompanhar o preço de importação das mercadorias.
No entanto, o preço médio apurado do refino do petróleo no Brasil está, hoje, na faixa entre US$ 30 e US$ 40, o que corresponde a mais de 80% da produção da Petrobras, pois menos de 20% da produção de combustíveis fósseis no Brasil é realizada através da importação de petróleo e derivados. Além disso, o saldo da balança comercial de derivados é positivo em 1,19 milhões de barris equivalentes de óleo (IBP, 2021), ou seja, o Brasil exporta mais do que importa combustíveis e o faz com um ágio de mais de US$ 40,00 em cima do preço internacional do petróleo (Brent).
Portanto, parece ser razoável supor a manutenção da política de preços atual teria relações com interesses maiores do que os da Petrobras.
Logo após o anúncio da revisão de preços do dia 18 de fevereiro, a XP Investimentos lançou um relatório no qual aponta que vê como “positivo que a Petrobras anunciou um aumento nos preços do diesel”, mas que “os preços dos combustíveis da companhia no nível da refinaria ainda continuam abaixo (dos) níveis necessários para viabilizar importações com margem de lucro” (XP, 2021).
O que os capitais financeiros evitam comentar é que as refinarias estão operando em 77,4% de suas capacidades. Portanto, tecnicamente, a Petrobras não precisaria importar insumos para a produção. Mas, se a Petrobras não precisaria importar óleo cru ou combustíveis e arcar com o prejuízo, então, porque equiparar os preços ao custo do petróleo internacional?
A resposta é que desde a quebra do monopólio legal da exploração e do refino da Petrobras, a estatal está sob constantes ataques que visam colocar as riquezas por ela administradas à disposição dos capitais estrangeiros, sob o argumento de que estes aportariam capitais, dinamizariam o setor, aumentariam as tecnologias envolvidas na extração, no refino e na derivação e, principalmente, reduziriam a precificação dos derivados no mercado interno.
Os ataques à Petrobras se intensificaram na Nova República, especialmente a partir do governo Fernando Collor de Mello (1990-1992). Várias das subsidiárias da companhia foram privatizadas, como a Interbrás (comércio exterior), a Fosfértil (fertilizantes) e a Petromisa (cloreto de potássio). Além da venda de participações relevantes da Petrobras e da Petroquisa (Petrobras Química). Em 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), foi promulgada a Emenda Constitucional nº 9, de 9 de novembro de 1995 (BRASIL, 1995), responsável pela quebra do monopólio estatal sobre a extração e o refino de petróleo e derivados.
Apenas dois anos depois, o Congresso Nacional aprovou a Lei Federal nº 9.478, de 6 de agosto de 1997 (BRASIL, 1997), que dispunha sobre a política energética nacional e o monopólio do petróleo, determinando o conjunto-base do regramento que extinguiu a exclusividade da Petrobras. Essa lei determinada expressamente que “as atividades econômicas […] serão desenvolvidas pela Petrobras em caráter de livre competição com outras empresas, em função das condições de mercado” (BRASIL, 1997).
Essa é a base na qual, progressivamente, o Estado preparou o terreno para a transferência de refinarias para os capitais, principalmente os estrangeiros, na contramão daquilo que ocorre nos países centrais. Os principais países produtores de petróleo (Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Catar, Bahrein, Estados Unidos, Rússia e China) têm aumentado o controle e a diversificação de suas capacidades de controlar a produção e o refino do óleo bruto. Essa estratégia tem sido intensificada não apenas dentro das fronteiras nacionais desses países, como também nos países dependentes, incluindo-se aí países do Oriente Médio, África e América Latina.
Em 2005, por exemplo, a chinesa CNOOC tentou comprar da estadunidense Unocal as atividades de refino de petróleo. A operação foi anulada pelo Committee on Foreign Investment in USA (CFIUS), sob a justificativa de que o refino de petróleo é uma propriedade estratégica de segurança nacional e de soberania dos EUA. No Brasil, ocorre o inverso, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para determinar, em outubro de 2020, que a Petrobras poderia privatizar suas refinarias e subsidiárias sem a necessidade de aval do Congresso Nacional ou de fiscalização pelo Tribunal de Contas da União. Em 2019, o STF já havia formado maioria para estabelecer que apenas a venda das estatais matrizes deveria ser analisada pelo Congresso Nacional, permitindo a ampliação do arsenal dirigido contra o patrimônio público.
Em 2015, no governo Dilma Rousseff (2011-2016), a Petrobras apresentou seu primeiro Plano de Desinvestimentos, com objetivo de alcançar um total de privatizações de US$ 58 bilhões, entre 2015 e 2019. O plano contemplava 30% das operações de extração de petróleo no exterior, 30% de abastecimento e 40% de gás e energia.
Em 2017, no governo Michel Temer (2016-2018), a política de desmonte da estatal de petróleo avançou consideravelmente. O plano deu seguimento à política do governo Rousseff, prevendo a venda das subsidiárias de refino, dos campos de extração de petróleo e a remoção da Petrobras da extração e distribuição de gás natural. O plano atual, divulgado em 2019 no governo Jair Bolsonaro (2018-2022), tem como objetivo a privatização de aproximadamente US$ 25 bilhões até 2024, com a venda de refinarias, termoelétricas, operações de gás, extração em terra, águas rasas e em águas profundas. Em 2021, a Petrobras colocou à venda a Nova Transportadora do Sudeste (NTS), a Transportadora Associada de Gás (TAG) e a Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG) – esses processos devem ser concluídos, segundo a companhia, até dezembro de 2021. Na prática, a Petrobras deve ser reduzida quase exclusivamente às operações do pré-sal, de altíssimo custo de extração do petróleo cru, baixo valor de comercialização (pelos problemas técnicos da composição desse tipo de óleo) e alto risco das operações.
Desde o início do ano, a Petrobras vem anunciando a venda de capitais e participações praticamente toda semana. No dia 1º de fevereiro, anunciou que vendeu a totalidade de suas participações na concessão BM-ES-21 (Plano de Avaliação de Descoberta de Malombe) e nos campos de produção de Peroá e Cangoá, denominados conjuntamente de Polo Peroá, localizado na Bacia do Espírito Santo, para as empresas OP Energia e DBO Energia. Em 5 de fevereiro, anunciou a venda da Petrobras Uruguay Distribución S.A. (PUDSA) para a Mauruguay (capital espanhol). No mesmo dia, anunciou que finalizou a venda de sua participação de 30% no campo de Frade, localizado na Bacia de Campos, litoral norte do estado do Rio de Janeiro, para a PetroRio; e a venda de sua subsidiária, a Petrobras Frade Inversiones S.A. (PFISA), para a Petrorio Luxembourg.
No dia 8 de fevereiro, a Petrobras anunciou que concluiu a rodada final do processo de venda da Refinaria Landulpho Alves (RLAM) e seus ativos logísticos associados, na Bahia, para o Mubadala Capital (dos Emirados Árabes Unidos). No mesmo dia, anunciou que segue em processos competitivos avançados de privatização das refinarias, são eles: a venda da Refinaria Alberto Pasqualini (REFAP), no Rio Grande do Sul; Refinaria Isaac Sabbá (REMAN), no Amazonas; Refinaria Abreu e Lima (RNEST), em Pernambuco; Refinaria Gabriel Passos (REGAP), em Minas Gerais; Lubrificantes e Derivados de Petróleo do Nordeste (LUBNOR), no Ceará; e da Unidade de Industrialização do Xisto (SIX), no Paraná. Além disso, informou que deverá reabrir em breve o processo de venda da Refinaria Presidente Getúlio Vargas (REPAR), no Paraná. E, no dia 9, comunicou que a Petrobras Biocombustível S.A. (PBio) finalizou a venda da totalidade das suas ações (50% do capital da empresa) de emissão da Indústria e Comércio de Biodiesel Sul Brasil S.A. (BSBios) para a empresa RP Participações em Biocombustíveis S.A. Essa venda envolve a usina de biodiesel de Passo Fundo, localizada no Rio Grande do Sul, e a usina de biodiesel de Marialva, localizada no Paraná.
Vale destacar que além dos problemas inerentes à perda de controle sobre as refinarias, a análise realizada pelo Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) denunciou que a Petrobras negociou a venda da Refinaria Landulpho Alves (RLAM), na Bahia, pela metade de seu valor estimado de mercado. Segundo o Ineep, a refinaria estaria avaliada em aproximadamente US$ 4 bilhões e a Petrobras aceitou receber US$ 1,65 bilhão.
Identifica-se, portanto, que a política de Estado na Petrobras é a de patrocínio das privatizações e que a política de preços atrelada aos preços do barril no mercado mundial é mais uma das estratégias adotadas. Essa condição é indispensável para que as refinarias privatizadas possam colocar a própria Petrobras em competição com outras indústrias de extração de óleo bruto ou, ainda, importar petróleo cru e refiná-lo no Brasil. Além disso, podem justificar a exportação de combustíveis e derivados refinados, apesar de o Brasil não atender a demanda interna.
A fonte de todos os problemas do abastecimento e da precificação de combustíveis, portanto, tem origem não no excesso de tributação ou na matriz de preços em si, mas no contexto mais amplo da política de Estado – que atravessou todos os governos, sem exceções, na Nova República – e que culmina no patrocínio das privatizações da companhia (1) pela venda da maior parte da capacidade de extração de petróleo bruto (os campos mencionados acima correspondem a pelo menos 50% da capacidade de produção de barris atual da empresa) e (2) pela política de atrelamento dos preços ao mercado internacional, iniciada em 2016, em contiguidade com o plano de desinvestimentos apresentado no governo Dilma.
Essa política é o desmonte do legado Getulista, que alçou o petróleo brasileiro à condição de riqueza estratégica da soberania nacional e cujas reminiscências ainda estiveram marcadas na Constituição Federal de 1988, ao determinar constitucionalmente o monopólio da extração e do refino do petróleo brasileiro à Petrobras. Com todas as contradições inerentes ao nacionalismo de tipo capitalista, a soberania nacional é assunto que interessa a todos os brasileiros, pois diz respeito às condições de usufruto das riquezas nacionais dentro do ciclo da economia interna. Portanto, inequivocamente todo o desmonte do patrimônio nacional – e sua inclusão no rol de empresas que transferem lucros para países estrangeiros – recoloca em evidência, de modo cada vez mais incisivo, a questão do imperialismo, que conhecemos na América Latina pela situação de dependência estrutural dessas economias em relação aos países de capitalismo central. É isso que está em jogo na Petrobras. Sem lutas e resistências capazes de virar o jogo, não haverá qualquer margem para um projeto revolucionário – mas também não haverá qualquer margem para sustentar qualquer que seja o avanço nas políticas sociais.
A resposta do governo Bolsonaro e o início de sua campanha para 2022
Sob a sombra da greve de caminhoneiros de 2018, surgiram rumores de que os caminhoneiros poderiam articular uma greve no dia 1º de fevereiro. Na pauta estaria novamente a reivindicação do piso do frete, a ampliação da rede logística e os sucessivos aumentos de preços do diesel. A demanda pela manifestação parece ter vindo da base de autônomos, descontente com a inação do governo Bolsonaro. Porém, as principais lideranças das associações de trabalhadores, alinhadas à cúpula do Governo Federal, procuraram dissuadir um movimento da base, arrancando mensagens de áudio do presidente Bolsonaro para fazer circular em redes sociais.
No dia 27 de janeiro, Bolsonaro afirmou que se reuniu com o Ministro da Economia, Paulo Guedes, e tratou sobre a possibilidade de compensar os caminhoneiros pelo aumento no preço do diesel. Bolsonaro fez um apelo aos caminhoneiros para que não iniciassem a greve, comprometendo-se a reduzir os tributos que incidem sobre os combustíveis, isentar as tarifas de importação de pneus e incluir os caminhoneiros na lista de prioridade para o recebimento da primeira dose da vacina contra o COVID-19. Bolsonaro aproveitou a oportunidade para dar seguimento à estratégia de manter a tensão com os governadores, afirmando que os caminhoneiros deveriam cobrar dos governadores a redução do ICMS. Alguns representantes dos caminhoneiros aderiram à estratégia do governo, buscando construir uma linha de atuação que isentasse Bolsonaro e se concentrasse na oposição aos governadores: “Se no Rio de Janeiro é mais caro, simples: a gente não entrega um grama de arroz naquele Estado. Quero ver se não vão baixar os preços” (PRESSINOTT, 2021).
O teatro de operações das finanças
No entanto, enquanto o governo tratava de colocar as principais lideranças dos caminhoneiros em banho-maria, a Petrobras trabalhava para assegurar aos capitais financeiros que as refinarias privatizadas pudessem ter um ambiente seguro e rentável, pois a política de indexação dos preços havia sobrevivido. Em uma reunião organizada pelo Credit Suisse, no dia 28 de janeio, Roberto Castello Branco, presidente da Petrobras, afirmou que “Os caminhoneiros autônomos têm uma frota cuja idade média é de 20,5 anos. São caminhões antigos, altamente consumidores de diesel… O custo do diesel é muito mais alto para eles. O custo de manutenção é evidentemente mais alto. Então trata-se de um problema de excesso de oferta, não se trata de um problema da Petrobras” (RAMALHO; RUDDY, 2021, p. 1). Na mesma ocasião, Castello Branco defendeu também o programa de vendas das operações da companhia: “Aqueles que defendem o monopólio são pessoas que defendem regimes autoritários. As refinarias podem dar retorno de 6% a 8%, estamos corroendo o retorno aos acionistas. Nossas refinarias deram lucro econômico negativo em bilhões de dólares” (RAMALHO; RUDDY, 2021, s. p.).
Embora a fala dirigida aos grandes capitais operacionalizados nos fundos de investimentos estrangeiros poderia ter passado sem maiores repercussões, Bolsonaro trouxe a fala à baila no dia 18 de fevereiro, logo após o anúncio do novo reajuste de preço do diesel e da gasolina. Na ocasião, mal-acostumado com a lógica formal, Bolsonaro afirmou “Eu não posso interferir na Petrobras, nem iria interferir na Petrobras. Se bem que alguma coisa vai acontecer na Petrobras nos próximos dias. Você tem que mudar alguma coisa”. O governo anunciou, então, que decidiu zerar durante dois meses (a contar de 1º de março) os impostos federais (PIS e Cofins) sobre o diesel e a isenção tributária federal sobre o gás de cozinha, de forma permanente.
No dia seguinte (19), o Ministério de Minas e Energia encaminhou um ofício ao Conselho de Administração da Petrobras indicando como membro do Conselho o general Joaquim Silva e Luna, que ocupava o cargo de diretor-geral brasileiro de Itaipu Binacional. Simultaneamente, o indicou para ocupar a posição de presidente da Petrobras para o próximo biênio, com início em 20 de março – quando se encerram os mandatos dos atuais conselheiros e do atual presidente, Castello Branco. Rumores na imprensa especializada deram conta de que os conselheiros atuais, reconduzidos por Bolsonaro, poderiam renunciar à recondução, na tentativa de ampliar o arsenal de pressões contra qualquer barreira ao processo de privatização acelerado da companhia. Atuariam, assim, como o ex-presidente da Eletrobras, Wilson Ferreira Junior, que renunciou ao cargo no dia 24 de janeiro, alegando informalmente que o governo não estaria suficientemente comprometido com sua promessa de privatização da Eletrobras ainda em 2021 (no cargo desde 2016, por indicação de Temer, Ferreira Junior era um dos principais protagonistas da privatização da empresa). Bolsonaro chegou a anunciar que se Arthur Lira (PP-AL) fosse eleito para a presidência da Câmara dos Deputados, a privatização da Eletrobras seria a sua prioridade, empurrando grandes bancos e fundos de investimentos para pressionar deputados a favor da candidatura do governo.
Na sequência, as ações da Petrobras na B3 foram derrubadas em aproximadamente 8%, com efeitos sistêmicos em todos os papéis relacionados aos produtos primários, à energia e às empresas públicas. Em relatório, a XP Investimentos sentenciou: “Não há mais como defender” (HIRATA; PINTO, 2021, s. p.). No relatório, os analistas afirmam ainda que “está se tornando cada vez mais difícil do ponto de vista político para a Petrobras implementar uma política de preços em que os preços dos combustíveis variam de acordo com as variações dos preços do câmbio e do barril de petróleo” (FRANCISCO; MALDONADO, 2021b, s. p.). Em relatório, a XP Investimentos defende ainda que os capitais monetários punam tanto quanto seja possível as ações da Petrobras: “Em nossa opinião, as ações da Petrobras devem passar por uma penalização no mercado semelhante ao que foi observado nos períodos […] de instabilidades no Brasil, e não deverão refletir o seu valor intrínseco” (FRANCISCO; MALDONADO, 2021b, s. p.). A linha é uníssona entre os grandes bancos. O Credit Suisse, por exemplo, indicou uma punição de pelo menos 50% nas ações da Petrobras negociadas em Nova York, de US$ 16 para US$ 8. A expectativa é a de que a Petrobras siga com queda nos preços das ações nos próximos dias, pois entre o anúncio e a posse do novo presidente da companhia existe o espaço de um mês, e novas ações do governo no setor de energias devem atiçar ainda mais os capitais financeiros.
O problema das isenções tributárias nos combustíveis
Além da insuficiência da medida de redução dos tributos federais por dois meses – e no gás, de forma permanente – menos de 14% do preço para o consumidor na bomba de combustível é composto pelos tributos federais. A redução, portanto, ainda que fosse permanente, apenas ampliaria a margem para novos aumentos tanto na política de preços da Petrobras nas refinarias, quanto nos demais capitais que realizam lucros na gasolina e no diesel – particularmente, as distribuidoras e os postos de combustíveis. As distribuidoras (Ipiranga, Raízen, Alesat, BR distribuidora, Ciapetro, TDC, Atems, Larco, Zema) são as que operam com margens significativas de lucros e pressionam constantemente os donos de postos de combustíveis e as transportadoras, que arcam com os riscos operacionais reais do comércio e formam a camada em maior risco contábil quando os preços dos combustíveis sobem. Não por acaso, algumas táticas dessa camada de proprietários de pequenos e médios capitais têm certo apelo reacionário: sendo frequente a superexploração da força de trabalho, adulteração de produtos, formação de carteis, esquemas de corrupção no abastecimento de frotas públicas, fraudes em concessões etc. São, na realidade, é um sintoma do nível de pressões sobre os preços operados pelos verdadeiros cartéis, formados pelas distribuidoras. Estas frequentemente participam de lucros tanto da venda dos combustíveis, entre 12% e 15% na faixa de preços, como dos lucros totais da unidade de venda que operam de forma franqueada. Com a redução tributária, apenas se abre mais espaço de manobra para a acomodação do conjunto de realizações de capitais no preço final (refinaria, distribuidora, transportadora, seguradora e postos de abastecimento). A política de preços da Petrobras, que favorece única e exclusivamente os interesses estrangeiros sobre as riquezas nacionais, permaneceria intocada – assim como as privatizações.
Além disso, as reduções e isenções tributárias têm efeitos sistêmicos para a classe trabalhadora. Diante da situação orçamentária atual e da composição de forças no âmbito do Estado, todas as isenções tributárias oferecidas em compensação aos capitais significam cortes proporcionais nas políticas sociais e, no limite, a compressão de salários das frações mais baixas dos servidores públicos. Os tributos cobrados pelos estados e pela União no preço de combustíveis existem porque se trata de uma atividade econômica que produz lucros num campo de atividades produtivas que são prejudiciais à coletividade.
As queimas de combustíveis, especialmente de origem fóssil e vegetal pelos veículos automotores, provocam emissões de partículas altamente prejudiciais à saúde humana e ao bem-viver coletivo. Um estudo publicado por pesquisadores da University College London, calculou mortes anuais entre 8,7 milhões de pessoas em 2018, decorrentes da queima de combustíveis fósseis como carvão, petróleo, gasolina e diesel (TORJESEN, 2021). Os custos relacionados ao atendimento de saúde, especialmente de crianças, são arcados em sua maioria pelo sistema público de saúde, assim como os danos ambientais. A pavimentação de rodovias, o planejamento urbano e os incalculáveis custos sociais o são da mesma forma. Portanto, a redução de tributos apenas onera uma vez mais a maioria da população, a classe trabalhadora, e permite inúmeras confusões sobre os interesses gerais que pesam hoje sobre as riquezas de seu patrimônio coletivo – nessa feita, o petróleo, o gás e os derivados.
Ao absorver impactos dos aumentos de preços dos combustíveis e, para compensá-los, realizar novos cortes orçamentários nas políticas sociais, o governo Bolsonaro não enfrenta nenhum dos grandes interesses estrangeiros no país. Se a classe trabalhadora for conivente com esse descalabro entreguista, suas condições de controle sobre os preços futuros de alimentos e outras mercadorias serão ainda mais escassas e as condições de transformações radicais de nosso modo de vida, diminutas. Afinal, as mínimas intervenções liberais do governo nas estatais suscitam ataques ferrenhos dos capitais, que ao derrubar as cotações das ações da empresa nas bolsas de valores diminuem as margens de crédito para o refinanciamento das operações normais da empresa e colocam em risco a capacidade de solvência das obrigações de curto prazo. O que podemos esperar, então, no que diz respeito a transformações mais profundas no contexto geral da sociedade brasileira?
Sem retomar o controle sobre as riquezas nacionais, nenhuma transformação nos modos de vida é possível no Brasil. A esperança de que os graves problemas nacionais possam ser circunscritos aos calendários eleitorais se esvai quando percebemos que a verdade é que de quatro em quatro anos as margens de intervenção de classe se tornam menores, conforme se esgota seu controle sobre as riquezas nacionais. É extremamente urgente que a classe trabalhadora possa atuar no campo econômico (e não na economia), o que nada mais quer dizer: no campo das determinações reais da vida social. É isso, ou nos resignamos a uma posição de pequenos espectadores da catástrofe social.
Referências
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