Estamos à beira de completar um ciclo anual de discussões sobre o Ensino Remoto. Durante esse tempo, por parte dos que se colocam contra-hegemonicamente, foram levantadas múltiplas determinações e implicações deletérias deste modelo de ensino. Muitas delas foram inclusive tratadas diversas vezes neste jornal. Ainda assim, gostaria de insistir mais uma vez neste debate por duas razões. A primeira, é de que essa experiência ainda está sendo assimilada pelos estudantes e professores. Sendo assim, há um espaço para disputar seu sentido e, consequentemente, a pertinência do que o capital tem apresentado como o futuro das universidades. Em segundo, por buscar adentrar um nicho ainda pouco discutido em sua especificidade: a pós-graduação.
O percurso na pós-graduação é dotado de um caminho próprio. O contato entre colegas é breve. Misturam-se alunos de diferentes programas e de diferentes momentos no interior da trajetória da pesquisa. Ainda que seja uma vantagem por permitir o contato diverso entre estudantes, torna mais difícil construir uma concepção de “turma” tal como é comum em diversos cursos da graduação. Além disso, o tempo na instituição pode ser breve. Após a conclusão das disciplinas, sobretudo aos cursos que não necessitam de uma estrutura laboratorial complexa, muitos pós-graduandos passam a desenvolver suas pesquisas exclusivamente em espaços externos à estrutura universitária.
Essas especificidades, em um primeiro momento, parecem indicar que o percurso da pesquisa se faz fundamentalmente sozinho. O bom pesquisador, seguindo essa lógica, seria aquele capaz de desenvolver sua pesquisa com a maior autossuficiência possível, tanto em relação aos colegas, quanto em relação à instituição. Como consequência desta, as tecnologias envolvidas na adoção do Ensino Remoto, a princípio emergencial, poderiam se apresentar como convenientes para adequar a pós-graduação a um padrão de ensino mais “moderno”, compatível com nosso momento histórico e com as necessidades individuais dos pós-graduandos.
Com isso em vista, a permanência das tecnologias a distância poderiam despertar otimismo, ao facilitar os breves encontros entre estudantes de diversas localizações geográficas; permitiriam convidar um pesquisador de referência para bancas, grupos, disciplinas que reside em outra cidade ou país sem grandes investimentos; e até mesmo a presença de um professor em dois lugares ao mesmo tempo, ao substituir os encontros presenciais por aulas já gravadas, permitindo a liberação do docente para outros compromissos. Entretanto, esse conjunto de elementos ligados ao Ensino Remoto precisam ser analisados com mais cautela, sob a ótica do sentido e condições das pesquisas no interior das universidades. A forma aligeirada como foi aprovado o Ensino Remoto, sob o argumento falacioso da excepcionalidade durante a pandemia, não pode ser um pretexto para que seja herdado à pesquisa brasileira um conjunto de dispositivos que a reposicionem em uma condição ainda pior.
Em primeiro lugar, o fato de a pós-graduação ser tipicamente um momento em que se desenvolvem pensamentos complexos, coloca em evidência os limites pedagógicos do ER. O contato entre pós-graduandos e com o ambiente institucional são fatores fundamentais para impulsionar os limites de apreensão desses estudantes. Apesar de o estudo individual ser crucial, são os debates promovidos nesses espaços que testam e aprofundam o nível de apreensão dos mesmos. Ainda que possa haver um esforço colossal de muitos professores na transmissão de um conteúdo de alta densidade, o próprio formato a distância impõe limites intelectuais intransponíveis. O resultado é que há necessariamente, em maior ou menor grau, um prejuízo na formação desses pesquisadores brasileiros.
Além dos danos relativos à privação do convívio, soma-se a ausência do apoio institucional. A falta da biblioteca universitária reduz drasticamente o conteúdo que pode ser desenvolvido tanto na sala de aula pelos professores quanto nas dissertações e teses. Além disso, o corte de verbas que a universidade vem sofrendo nos últimos anos vem afetando a estrutura institucional. Prédios à beira de desmoronar e laboratórios sem insumos têm sido uma constante nas universidades públicas.
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O fato de o Ensino Remoto aparecer como positivo para muitos pós-graduandos também diz respeito à situação do financiamento da pesquisa no Brasil. Como o valor das bolsas é extremamente baixo – cerca de 2 salários mínimos para doutorado e 1,4 para mestrado -, aparece como resolutiva a possibilidade de prestar um processo seletivo que não implica na mudança imediata do estudante para um centro urbano com custo de vida alto, como é o caso de muitas universidades. Dessa maneira, o Ensino a Distância encobriria um problema fundamental para a pesquisa brasileira. Para além dos cortes sistemáticos nas bolsas, elas não sofrem reajuste há oito anos. Na prática, mesmo os que conseguem receber bolsa de pesquisa neste cenário de alta escassez, passam dificuldades em conseguir pagar os custos básicos. Muitas vezes, essa dificuldade impede a dedicação exclusiva dos pesquisadores para o desenvolvimento de conhecimento de alto nível.
Essa situação das universidades públicas, e na qual o Ensino a Distância (EaD) se apresenta como solução, traz implicações profundas para a sociedade em geral. Se tomarmos como exemplo os dados do Clarivate Analytics de 2018, indicador baseado em critérios fortemente produtivistas mas que ajudam a ilustrar nosso argumento, 95% da produção científica é desenvolvida no interior das universidades públicas. A permanência do Ensino Remoto na pós-graduação impõe, portanto, um impacto direto na produção da pesquisa nacional. As universidades públicas ainda são um parâmetro social de qualidade no ensino superior. O rebaixamento de suas atribuições de ensino e pesquisa implicam em prejuízo na produção de conhecimentos em diversas áreas. O impacto é duplo.
A um país sem produção científica, artística e filosófica densa, é relegado apenas, na Divisão Internacional do Trabalho (DIT), um lugar enquanto produtor de mercadorias com custos extremamente baixos. Além disso, a ausência de diversos elementos presentes na universidade com a transformação da pesquisa na modalidade remota – contato entre colegas, espaços de convívio, participação de debates, entre outros -, implica em perda da capacidade crítica, ou seja, de tratar dos problemas sociais a partir de uma ótica que ultrapasse as coordenadas já estabelecidas pela ordem social. Nesse sentido, restaria às universidades públicas responder aos problemas mais imediatos impostos pela necessidade do capital, e não da sociedade em geral.
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Tendo em vista essas características particulares da pós-graduação, é fundamental atentar-se para que os elementos que se apresentem como positivos no Ensino Remoto não se destaquem desta conjuntura mais geral da pesquisa brasileira. Este modelo de ensino e pesquisa não corrige a problemática fundamental que enfrentamos ao menos desde 2016: os sistemáticos cortes de verbas nas universidades públicas. Além disso, as agências de fomento também têm diminuído os recursos para a pesquisa brasileira. É fundamental reivindicar a recomposição do orçamento tanto para a manutenção de uma estrutura decente ao desenvolvimento das diversas pesquisas quanto para garantir que os pesquisadores possam dedicar-se exclusivamente à pesquisa. Ainda que o Ensino Remoto mascare essas problemáticas, ele também intensifica os impactos destas. Assim, só nos resta nos havermos com estes que têm sido os fantasmas que assombram a pesquisa brasileira.
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