Lá se vai o “ano da pandemia”, que começou em 2019 e que, com muita sorte, poderá terminar em 2021. No Brasil, inegavelmente foi um ano de tragédias: às quase 200 mil mortes (subnotificadas) pela Covid-19 somam-se as mais de 32 mil mortes violentas (somente até setembro)[1], a maior tragédia ambiental deliberadamente instalada que incendiou vastos territórios da flora e fauna brasileiras, a crise econômica e a explosão do desemprego. Estes são apenas alguns episódios dessa tragédia que se chama Brasil, mas nem por isso é possível afirmar que 2020 surpreenda.
As vítimas da pandemia, uma classe trabalhadora que se pauperizou ainda mais, as vidas negras ceifadas pela ação repressiva das polícias e pelo racismo estrutural que as torna vítimas em potencial do conjunto da sociedade, a violência da adoção do chamado “ensino remoto”, a ausência de uma política efetiva de prevenção e combate à pandemia, tudo isso é – ao mesmo tempo – o sucesso do governo Bolsonaro e de seus aliados, explícitos ou não.
Sim, o sucesso de um governo e um programa político em que tragédia, violência, genocídio e indiferença são eixos estruturantes. Com ou sem pandemia. Um projeto que vem a calhar com a dinâmica do capitalismo brasileiro em crise e cujas contradições revelam antes a adequação (sem disfarces) que o despreparo das forças políticas que ocupam o governo, como quer uma parte da opinião pública que, com certo saudosismo[2] alienante, se compraz com a imagem de um governo “esclarecido” que poderia fazer diferente e parece aguardar por uma autodissolução do projeto em curso. Bolsonaro e o bolsonarismo são gerentes eficazes dessa máquina da morte e da destruição que é o capitalismo brasileiro no século XXI.
Pode-se dizer, portanto, que para o governo brasileiro o ano de 2020 foi melhor que 2019. A pandemia ressaltou suas linhas dominantes, aquelas mesmas que Paulo Guedes, o ministro “guru” da tragédia, dizia serem evidências de uma economia “prestes a decolar” no início do ano. Ao se desenrolar em um contexto de ampla desagregação e fascistização da vida social, não há dúvidas de que os traumas da pandemia foram potencializados. Vetores principais desses processos são os “ajustes” em benefício do capital (“reformas” como a trabalhista, da previdência, EC n. 95/2016, entre outras), cujas consequências mais sensíveis se concretizam por meio do desmonte acentuado de políticas fundamentais e também na fragilização das possibilidades de resistência. Uma combinação que opera a função de socializar a violência que o capital emprega contra o trabalho para o conjunto das relações sociais, até em setores antes mais preservados.
O projeto representado pelo governo brasileiro está prevalecendo porque, apesar das dificuldades criadas, suas ações vacilantes no contexto da pandemia reforçam essas linhas já dominantes. Foi eleito, justamente, para fomentá-las: degradação ambiental em prol do agronegócio; violência institucional e policial (na cidade e no campo) como formas de gestão do conflito social; dissolução de direitos trabalhistas elementares como recomposição do capital frente à crise econômica; perda de direitos e deterioração das políticas sociais em geral, particularmente as de educação e saúde, sem falar nos processos de privatização. Nesse sentido, não é a pandemia que faz “a boiada passar”, mas as porteiras já abertas para uma boiada que nunca deixou de passar é que tornam a pandemia mais dramática. O que vimos neste 2020 foi uma explicitação maior das faces mais perniciosas desse projeto, sem abalo nos índices de popularidade do governo. Nosso 2020 não começou com a pandemia, mas lá em 2018, com as eleições presidenciais.
Atentemos para uma verdade, das poucas ditas por Bolsonaro em 2 anos de mandato: ao declarar que o país estava vencendo a guerra contra a pandemia, o que o presidente queria dizer é algo coerente com seu programa. Não se pode vencer uma guerra que não é “sua”: a guerra que o governo está travando e vencendo, ao contrário, é contra a grande maioria que depende do atendimento público de saúde, contra os trabalhadores e trabalhadoras que, de tão precarizados e informalizados, não puderam nem cogitar parar de trabalhar à despeito do risco de vida[3], enfim, contra todos/as aqueles/as que precisam lotar o transporte público para prover com sua força de trabalho aquilo que a burocracia chama de serviços essenciais. Ou seja, a inimiga principal deste projeto de governo é a classe trabalhadora, que coloca empecilhos aos interesses do capital: aquelas pessoas sem as quais não há “serviços essenciais” (públicos ou privados), mas que, para o Estado e para o capital, são mercadorias descartáveis. É para esse público que o bolsonarismo se dirige como “forte”, ao mesmo tempo que agrada a seu séquito quando desqualifica como “maricas” aqueles que ousam questionar seus dogmas, reforçando seus preconceitos já conhecidos.
Estamos diante de uma máquina da morte que não pode parar, justamente, porque a morte, para ela, não é consequência, e sim um pressuposto. E se há uma pandemia que faz com que grande parte da sociedade, notadamente da classe trabalhadora[4], escancare seus problemas para com esse modus operandi, é ela e não a pandemia que é tomada como empecilho. Por isso, não há mera coincidência no fato de que tais forças políticas tenham em seu DNA, precisamente, aqueles segmentos mais brutais da Ditadura (saudosos do AI-5), além de seus tentáculos civis e militares que, como dantes, fazem das práticas de tortura, mortes por “sumiço”, “balas perdidas”, espancamentos até o óbito, formas tão naturalizadas da vida social.
Com Bolsonaro, o Estado brasileiro encontra não apenas as formas de escancarar as porteiras para a “boiada”, mas também se especializa em abrir as muitas valas comuns[5] nas quais vai se alicerçando a barbárie. Este é o projeto político hoje instalado no governo, mas sem esquecer que sua força advém dos amplos apoios dos quais se beneficia: seja naquela vertente da “economia prestes a decolar” de Guedes, que agrada a amplos setores da grande imprensa, do empresariado, do agronegócio e setores primário-exportadores, além dos bancos, para os quais quanto mais ajuste, melhor; seja naquela outra vertente – não menos vinculada a atividades econômicas – associada à chamada “pauta de costumes” e aos ditames de uma vida social fascistizada e mercantilizada pelas organizações religiosas, milícias e suas variantes. Ambas, aliás, que também interessam aos setores militares de primeira ordem que sustentam o governo.[6]
Outros dois episódios deste 2020, por si só, também revelam muito a respeito do projeto em curso: o mesmo governo que lançou, em favor dos bancos, um “inovador” sistema eletrônico de pagamentos com sucesso imediato, forçou dezenas de milhares de pessoas a se aglomerar desesperadamente em filas de agências bancárias para tentar receber míseros reais do auxílio emergencial, já que o precário aplicativo de um banco estatal não funcionava[7]. Mais recentemente, temos visto a agência governamental responsável pela saúde pública ameaçando impor um burocrático e letárgico processo de aprovação de vacinas contra a Covid-19, a mesma agência que no período da pandemia se notabilizou por sua generosidade para com a liberação de agrotóxicos, com comprovados danos à saúde e ao meio ambiente[8].
Ora, a considerar que essas linhas gerais do governo nunca estiveram tão em alta como ao final deste “ano da pandemia”, podemos imaginar que os próximos dois anos de Bolsonaro no poder seguirão igual tendência ou, pior, poderão acentuá-las. Em ambos os casos, é bastante razoável afirmar que o que tivemos em 2020 serve como uma espécie de vitrine do potencial nefasto desse projeto para o país. Não é preciso pagar para ver: os quatro anos de Bolsonaro já estão bem representados em um só. Evitar que a tragédia se amplie é um imperativo inadiável.
[1] Ver: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/11/19/brasil-tem-alta-de-4percent-no-numero-de-assassinatos-nos-primeiros-nove-meses-do-ano.ghtml
[2] Ver: PINASSI, Maria Orlanda. 2020, ano de escombros. Que fazer? (https://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/14465-2020-ano-de-escombros-que-fazer). Acessado em: 24 dez. 2020.
[3] Isso porque grande parte deles foi simplesmente demitida.
[4] Evidentemente, os impactos sobre a classe trabalhadora são bastante desiguais. Podem abranger segmentos cujo cotidiano é o da luta pela sobrevivência e, no outro extremo, setores de classe mais bem assalariados e com estabilidade de renda. Não é preciso dizer que as reações de cada um desses setores também podem ser muito heterogêneas; o que é certo é que o conservadorismo da chamada “classe média” vem se revelando mais pernicioso nesse processo da pandemia, sobretudo quando ela, mesmo tendo condições de adotar todas as medidas protetivas e preventivas, se dá ao luxo de não aderir (ou de aderir parcialmente). Pessoas que mantêm certa vivência social, vão à praia ou ao campo se “reenergizar” ou por estarem “cansadas”, o que, em todos os casos, não muda em nada o fato de estarmos diante de uma ‘troca’ de risco: porém, um risco em que se tem ciência de certas garantias, como, por exemplo, de um tratamento mais acessível (privado) em caso de adoecimento, algo indisponível para as maiorias dependentes do SUS. Ou seja, um ‘cálculo’ feito com base na desigualdade e na indiferença para com os demais, um dos pressupostos do projeto que, querendo ou não, acabam ajudando a sustentar.
[5] As valas abertas preventivamente em cemitérios no primeiro dos períodos mais tensos da pandemia talvez sejam as imagens mais emblemáticas desse processo. E também fazem emergir uma dúvida: teria sido essa a política mais efetiva e ágil do Estado brasileiro para enfrentar a pandemia?
[6] Há, portanto, um conjunto complexo de forças de sustentação, o que nem sempre é explicitado quando o debate se reduz a algumas caricaturas e oposições simples como ciência x fake news ou conservadorismo x progressismo. Deliberadamente, deixamos de fora aqui o tema do chamado negacionismo, que mereceria tratamento mais aprofundado e específico.
[7] Sobretudo para a camada mais pobre da população, pois, para milhares de pessoas (incluindo funcionários do governo e militares que sequer deveriam receber o auxílio) não parece ter havido esse tipo de problema.
[8] Duas referências importantes para esse tema estão em: 1) https://reporterbrasil.org.br/2020/05/96-agrotoxicos-sao-aprovados-durante-a-pandemia-liberacao-e-servico-essencial/ e 2) https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2020/10/28/governo-libera-o-registro-de-16-agrotoxicos-genericos-para-uso-dos-agricultores.ghtml
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