por Carolina Picchetti Nascimento, professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, para o UàE
A palavra tentou. Esforçou-se. Buscou todos os meios para sustentar a condição de excepcionalidade. Mas a ação era mais forte. Bastou um gesto, certeiro, para decapitar a excepcionalidade pela raiz. Justo a sua raiz! Lá se foi a exceção, tombada no chão. Restou o sufixo, esse ser amorfo, desprovido de sentido e sem autonomia para nada. A ação, compadeceu-se de seu próprio gesto e tomando o sufixo nas mãos apressou-se em dar-lhe novo corpo. Um justo corpo de lei. E disse: chamar-te-á, de agora em diante, legalidade.
A materialização do “Ensino Remoto Emergencial” nas Universidades públicas ao longo de 2020 apareceu,e segue aparecendo,hegemonicamente, como uma ação de excepcionalidade diante da pandemia. Contudo, entre a aparência e a essência em relação aos significados e impactos concretos do Ensino Remoto Emergencial na formação discente, nas condições de trabalho docente e na própria existência das Universidades públicas, segue existindo a necessidade de analisarmos e explicarmos as múltiplas mediações que as conectam.
Poderia ser pertinente começarmos com uma singela pergunta: se o Ensino Remoto é “emergencial”, qual é a emergência que estamos enfrentando? Parece que a resposta mais otimista é que a emergência está em “socorrer” o semestre ou o calendário acadêmico. Contudo, se essa é a nossa resposta otimista é porque existe uma resposta de fato “pior” que a já inaceitável subordinação da formação à certificação. Parece que a verdadeira emergência do Ensino Remoto está em gestar as bases, objetivas e subjetivas, para uma implementação sistemática e permanente da lógica remota de organização da atividade pedagógica nas Universidades públicas.
Não há dificuldades em reconhecermos que o Ensino remoto propõe uma “nova forma” para a realização dos processos de ensino e de aprendizagem. Mas essa nova forma, definitivamente, não está no uso das “mídias”, na “forma” tecnológica. Não é essa “forma”que causa preocupações àqueles que se posicionam contrários à implementação do “Ensino Remoto Emergencial”. A nova forma que objetivamente organiza as atividades docente e discente refere-se à ampliação e intensificação de uma lógica específica de produção e reprodução da atividade de ensino: a lógica de simplificação do trabalho docente (o professor como um aplicador de conteúdos ou “acompanhador” de aprendizagens, mas não aquele que efetivamente ensina); a lógica de transformação do trabalho vivo docente por trabalho morto (a aula transforma-se em “vídeo-aula”; o ensino transforma-se em “atividade assíncrona”); e a lógica de redução das metas ou expectativas formativas (redução dos conteúdos, da carga de leitura e, sobretudo, da possibilidade de profundidade no trato com o conhecimento). Esta lógica de produção dos processos de ensino e de aprendizagem constitui, fundamentalmente, a nova forma que deve ser avaliada e debatida quando falamos sobre o Ensino Remoto Emergencial em nossas universidades.
Estamos diante de uma mudança de forma que reflete um novo conteúdo ou estrutura de realização da atividade docente e discente. É precisamente por isso que não são nossas ações individuais (de “sucesso” ou “fracasso”) as balizadoras para compreendermos os significados e os impactos do Ensino Remoto Emergencial em nossas Universidades. Façamos a seguinte analogia para ilustrar essa mudança de forma (ou, mudança de lógica) que estamos vivendo no ensino.
Do mesmo modo que no início da manufatura o trabalho individual de cada artesão não se alterou imediatamente diante da presença da nova forma que se instaurava[i], podemos também dizer que o nosso trabalho docente (e a atividade discente), individualmente, podem não ter se transformado imediatamente com o Ensino Remoto Emergencial. Na aparência pode-se dizer (como alguns dizem) que estamos fazendo “a mesma coisa” ou “quase a mesma coisa” no semestre remoto. Mas parece importante reconhecermos que essa nova forma de organização do ensino e da aprendizagem, que já nos coloca de maneira muito objetiva outras condições de trabalho e de estudo, gera todas as condições necessárias para a transformação dos nossos trabalhos individuais[ii]. O fato de, por acaso, não sentirmos ou percebermos isso no cotidiano de nossa ação docente não muda em nada a sua existência objetiva.
O ensino remoto, existindo como um braço de um projeto educacional subordinado aos interesses dos grandes conglomerados empresariais, possui uma lógica de produção e reprodução da atividade pedagógica que gera mudanças estruturais na realização da atividade pedagógica. Uma primeira mudança está na diminuição da quantidade de tempo aula, o que gera, por sua vez, uma redução na quantidade de leituras e conteúdos que podem ser efetivamente trabalhados, debatidos, apropriados, no tempo de atividade conjunta entre professores e estudantes. Essa primeira mudança desdobra-se, então, em uma redução nas expectativas de aprendizagem, já que a apropriação do conhecimento, como um processo sistemático e contínuo, não se resolve com a mágica transformação do tempo de aula em tempo de “atividade assíncrona”.
Se vivêssemos um cenário de real excepcionalidade, poderíamos nos conformar com essa situação. Seria uma solução mais do que justa em tempos de pandemia. A situação que vivemos na vida e, portanto, no ensino e na aprendizagem é tão fora do normal que não faz sentido fazermos algo tão distinto e precarizado, com expectativas formativas tão mais baixas para a formação discente e validarmos institucionalmente como formação feita.
Mas ocorre que o ensino remoto não é, de fato, emergencial, mas emergente. O “ensino híbrido” anuncia-se já como um modelo desejável pra as universidades públicas, e não mais “apenas necessário” diante da pandemia. Sendo assim, essa redução nas expectativas de aprendizagem indica que, em breve, estaremos diante de um “novo normal” em relação aos objetivos de formação dos graduandos. A pergunta que fica é sobre quando os cursos começarão a ajustar não mais os Planos de Ensino, como tão prontamente fizemos, com “criatividade” e “esforço”, mas os seus Projetos Pedagógicos, para que caibam nessas “novas” metas de aprendizagem discente.
Temos que considerar seriamente o quanto as condições que estamos gestando agora, diante da pandemia (do dito excepcional), em um cenário de franca redução de verbas para a universidade e perda de sua autonomia, não serão utilizadas daqui há alguns semestres, quando a pandemia passar, como “soluções” para outros problemas que certamente aparecerão. Será que quando faltar professor para uma disciplina a “resposta” não esteja em recuperar as “aulas gravadas” do semestre passado? Afinal, que mal teria, já que foram “aulas” feitas com muito zelo, esforço e qualidade pelo outro professor? Ou, quem sabe, a solução esteja em permitir que os estudantes matriculem-se em uma disciplina equivalente em qualquer universidade do país? Com o tempo, talvez, um projeto de curso nem mesmo seja mais necessário: cada sujeito realizará o sonho da “liberdade de escolha liberal” que, como sabemos, será uma liberdade de fazer escolhas diante da falta de opções.
O ensino remoto emergencial é, na verdade, emergente de uma nova lógica de realização da atividade pedagógica. A sua excepcionalidade esteve presente sempre como sufixo, convenientemente desprovido de sua raiz, de modo que não poderá ser uma surpresa para nós vermos, cada vez mais, a palavra excepcionalidade se metamorfosear em ações de legalidade.
[i] “Com relação ao próprio modo de produção, a manufatura, em seus primórdios, não se diferencia da indústria artesanal da corporação, a não ser pelo número maior de trabalhadores simultaneamente ocupados pelo mesmo capital […] inicialmente, portanto, a diferença é meramente quantitativa” (Marx 2013, p.397))
[ii] MARX, O Capital, volume 1. São Paulo: Boi tempo, 2013.
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