Entrevista
O Conselho das Américas e sua influência na política brasileira
Entrevista com a pesquisadora da UFRJ Rejane Hoeveler.
Rejane Carolina Hoeveler é professora substituta da Escola de Serviço Social da UFRJ, Doutora e mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF). A pesquisadora participou do Çirculação da Balbúrdia, atividade promovida pela EFOP Vânia Bambirra e concedeu uma entrevista ao Universidade à Esquerda a respeito de sua tese de doutorado intitulada “(NEO)LIBERALISMO, DEMOCRACIA E “DIPLOMACIA EMPRESARIAL”: A HISTÓRIA DO COUNCIL OF THE AMERICAS (1965-2019)”. A tese encontra-se disponível para leitura na Biblioteca da EFoP e a apresentação e debate podem ser assistidos no canal do YouTube da EFoP. Confira a entrevista à seguir:
UàE: Você poderia explicar, a partir da sua pesquisa, o que é a AS/COA e quais as suas formas de intervenção na política na América Latina?
Rejane: AS/COA é a sigla de Americas Society/Council of the Americas, que formalmente é uma entidade sem fins lucrativos, fundada em 1965 por dois grandes banqueiros norte-americanos: David Rockefeller e JP Morgan. Inicialmente era formada por 200 corporações que somadas correspondiam a 80% dos investimentos externos diretos na América Latina naquele período e eram basicamente capitais de origem nacional norte-americana, mas havia capitais de origem europeia, principalmente alemães, e também japoneses. Então eles são as grandes corporações que tinham plantas, exportavam capital para a América Latina em diversos setores da economia.
Ela ganhou essa sigla em 1981. Inicialmente, em 1965, se chamava CLA, Council for Latin America, Conselho para a América Latina. Depois muda para Council of the Americas, ou seja, Conselho das Américas, numa operação linguística para convencer os latino-americanos de que aquele conselho não era dos Estados Unidos para nortear a América Latina e sim construído de forma conjunta por estadunidenses e latino-americanos. Aos poucos, tanto o número de empresas quanto de diretores de origem latino-americana no conselho aumenta e ele chega em 2017 com pelo menos 10 empresas importantes de origem latino-americana. Uma boa parte da sua diretoria hoje tem essa cara mais latino-americana. A mudança de nome é importante porque tem justamente a ver com as formas de intervenção deste conselho na política na América Latina e também nas relações entre Estados Unidos e América Latina. É uma entidade que é reconhecidamente muito influente na definição da política externa dos Estados Unidos para o conjunto da América Latina. Eles chamam de relações hemisféricas, porque gostam de usar eufemismos para tudo, então é tudo em nome das Américas, e a mudança do nome tem a ver com isso.
O Conselho incluía desde o princípio e continua incluindo não só empresários, mas também advogados que trabalham por Lobby dessas empresas, firmas de advocacia especializadas em defender o direito do Capital. Também participam outros tipos de membros, como intelectuais. Por exemplo atualmente tem um importante intelectual brasileiro vinculado ao Council of the Americas que é o Fernando Henrique Cardoso. Ele e o Ricardo Lagos são dois nomes importantes do conselho na revista da AS/COA fundada em 2007, chamada Americas Quarterly. A Monica de Bolle também é uma importante articulista dessa revista.
Quanto às formas de intervenção na política na América Latina, foram muitas e variaram bastante ao longo do tempo. As modalidades de ação política compreendiam e incluíam pressão junto aos governos latino-americanos para maior abertura comercial: taxas menores para importação e melhores condições para o capital estrangeiro invertido. Eles sempre defenderam a igualdade de condições de tratamento para capitais de origem nacional e de origem internacional, pressionando também o Governo dos Estados Unidos para uma política externa que fosse condizente com esse objetivo, que ultrapassa os interesses econômicos corporativos de empresas X ou Y, mas defende os interesses do Capital em geral invertido na América Latina.
UàE: Ao longo do tempo o Council of the Americas teve diferentes formas de influência no Brasil. Você poderia falar sobre como atuou este conselho no golpe de 64 e durante a ditadura subsequente?
Rejane: Em primeiro lugar é importante marcar qual era o contexto histórico do momento no qual é criado esse conselho: um momento em que América Latina está impactada pela Revolução Cubana de 59 e portanto o anticomunismo é uma ideologia muito forte na própria gênese do conselho. Isso está na junção de três entidades de caráter privado, mas semioficiais, que foram construídas pelo irmão mais velho do David Rockfeller, o Nelson Rockfeller, desde os anos 40, agregando empresários latino-americanos e tendo bons contatos com os governos latino-americanos.
O conselho é fundado um ano após o golpe de 64 no Brasil, porém os seus membros, por exemplo o Jack Wyant, já tinham uma participação importante na política brasileira através do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Como o cientista político Renê Dreifuss mapeou muito bem no livro “1964, a Conquista do Estado”, [o IPES] foi o córtex político que agregava uma série de frentes de atuação: frente estudantil, sindical, popular, e que captava recursos através dos agentes que serão depois diretores do Conselho. O Jack Wyant tinha uma estreita relação com a Associação Comercial do Rio de Janeiro, que estava bastante presente no IPES. Então após a criação oficial do conselho, o IPES passa ser a principal forma de atuação do Conselho das Américas no Brasil e continua atuante até 1972. A maioria dos seus quadros são incorporados no governo Castello Branco, como mostra a tese de doutorado da pesquisadora Elaine Bortoni.
O conselho tem um boletim de 1965 sobre as atividades do Conselho no qual eles relatam uma série de iniciativas de propaganda da livre empresa, de propaganda voltada para os empresários, para organização e atuação política, convocando o engajamento empresarial na política, sempre em tom de ameaça: “os ventos de Cuba estão ameaçando o continente”. Então eles tinham essas ações de propaganda de doutrinação, tanto voltadas para camadas populares quanto, de outra maneira, ações voltadas para o recrutamento de ativistas empresariais ao redor desse objetivo, que é tanto de um alinhamento com os Estados Unidos quanto uma propaganda do capitalismo, do Mundo Livre, no contexto da Guerra Fria.
[O Conselho das Américas] vai ter uma participação importante ao longo da ditadura brasileira no sentido de travar contatos e fazer projetos comuns com empresários brasileiros.
É por iniciativa do Conselho que é criado em 1975 o Conselho Empresarial Brasil-Estados Unidos (CEBEU), que atualmente funciona sob a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Conforme eu pude observar nos relatórios e correspondências internas no Rockfeller Center em Nova York, ao longo de toda a ditadura o conselho tinha uma estreitíssima relação com o regime empresarial-militar brasileiro, assim como eles vão ter tem uma fortíssima participação no golpe no Chile em 1970 e 1973.
UàE: O envolvimento entre o Council of the Americas e o governo brasileiro não se deu somente nos governos antidemocráticos. Existia uma excelente relação com o ex-presidente Lula. A que você acha que se deve essa boa relação?
Rejane: Essa é uma excelente questão porque uma das principais reflexões que eu tive que fazer na tese foi justamente como muda a atuação do Conselho de um cenário de ciclo ditatorial para um cenário de transições democráticas e para os regimes democráticos que são constituídos no período mais recente, com diferentes cronologias em cada cenário nacional, mas que de uma forma geral desembocaram na construção de democracias neoliberais. O Conselho tem uma participação importante nessas transições porque ele é um lócus, por exemplo, de negociação das dívidas externas que explodem nos anos 80. Inclusive porque participavam do Conselho os principais bancos privados credores dessas dívidas. Eles terão um papel importante para que o neoliberalismo estivesse ali como uma pré-condição para essas democracias nascentes.
Como o Conselho tem um papel oficioso na diplomacia entre Estados Unidos e América Latina é mais ou menos normal que eles busquem relações com todos os governos, mesmo os que eles mais odeiam. Então, por exemplo, eles convidaram Rafael Correa, do Equador, e ele foi lá e deu uma resposta meio atravessada para eles, que não chamaram mais.
Com todos os governos eles procuram ter boas relações justamente para poder fazer pressão. Seja uma pressão mas amigável, digamos assim, seja uma pressão mais de chantagem: “Vamos retirar os investimentos, caso vocês inventem de expropriar”. Esse foi o caso da Argentina a partir dos anos 2000, quando os governos começaram a ter problemas com as instituições do Consenso de Washington e eles fizeram uma forte campanha contra Argentina dizendo que a Argentina nunca seria um país respeitável e não merecia o crédito dos empréstimos porque não faz o dever de casa, porque tem muita corrupção, etc.
Sobre o Lula, sempre que tem importantes eleições presidenciais eles chamam os principais candidatos, então o Lula foi duas vezes ao longo dos anos 90 em eventos no Conselho das Américas e nesse momento em que o PT ainda era identificado com o projeto classista, de algum tipo de enfrentamento anti-imperialista, o Lula era perguntado assim: “você vai fechar a bolsa de valores?”. Eles tratavam assim, bem mal mesmo esse Lula dos anos 90.
Isso muda quando o Lula ganha as eleições, faz a carta ao povo brasileiro e indica o Palocci como Ministro da Fazenda. A partir daí o Lula passa gozar de grande credibilidade junto ao conselho das Américas principalmente por ter conciliado interesses, desenvolvido uma boa relação com o Governo dos Estados Unidos, mas também com as empresas americanas, ele nunca ameaçou nada nesse sentido, nunca foi uma ameaça. Ao mesmo tempo promovia um modelo de conciliação nacional, de paz social que gerava estabilidade política, que era boa para o ambiente de negócios, como eles chamam.
O Conselho e até o Colin Powell afirmou que o Lula era um grande exemplo, Bill Clinton também, que o Lula era um grande exemplo de um modelo para América Latina, onde se faz uma certa distribuição de renda, onde se aquece a economia, “o ganha ganha”. Então foi mais ou menos essa a história do Lula.
Agora quem foi realmente condecorado pelo Conselho das Américas foi o Collor. O Collor era grande esperança de um governo neoliberal estável e radical. Infelizmente um ano depois de receber a medalha do Conselho das Américas, ele sofreu impeachment. Com o Itamar eles tinham péssimas relações porque o Itamar não gostava muito de privatizações. O Itamar chegou a ter uma briga pública com o Armínio Fraga na sede do Conselho das Américas por isso.
Depois eles construíram uma relação orgânica com o Fernando Henrique Cardoso, não é atoa que até hoje ele é conselheiro do Americas Quartely. A partir do governo Dilma eles começam a monitorar um pouco mais, principalmente a questão do petróleo. Parece que já tinham algumas ressalvas em relação à política econômica.
UàE: A partir de 2017 o Conselho das Américas passa a ter uma nova forma de atuação na política no Brasil que é o Renova BR, financiado pelo Luciano Huck. O Renova BR se tornou conhecido por causa da Tábata Amaral e esse mês surgiu a notícia de que o PSOL estaria impedindo a nomeação de uma vereadora por causa da sua relação com o Renova BR. Gostaria que você falasse um pouco sobre a relação entre o Conselho das Américas e o Renova BR, o que ele significa na política brasileira e qual você acredita que deve ser a postura dos partidos de esquerda em relação a esse tipo de iniciativa, como o Renova BR.
Rejane: Na minha tese eu mostro que a partir dos anos 2000, marcadamente 2007, o Conselho passa a desenvolver uma série de projetos pela América Latina os quais visavam prover aos elaboradores de políticas públicas dos governos “soluções” para os problemas sociais de maneira geral: educação, saúde, segurança. Nas quais o chamado Setor Privado pudesse ter uma participação. Nesses relatórios que eles desenvolvem essas recomendações passam por negar a possibilidade de sistemas de educação e saúde públicos gratuitos e universais, como se fosse um pressuposto e ao mesmo tempo isso é uma forma de abertura de fronteiras para valorização do Capital. O setor privado entra com uma “nova responsabilidade social corporativa”. Esse é um termo que eles usam desde os anos 70 e vão sofisticando.
Entre esses projetos estão o apoio direto e indireto a determinados movimentos políticos e organizações políticas. Pela legislação norte-americana como eles são uma organização de Lobby, isenta de determinados impostos, eles não podem intervir na política diretamente. Ou seja, declarar apoio a um determinado partido e também não podem influir sobre a política diretamente de outros países. Então eles encontram maneiras mais disfarçadas e sutis de promover isso, é o caso do Renova.
Em 2017 a Presidente do Conselho, Susan Segal, une-se ao Eduardo Mufarej, que é o dono do grupo Somos Educação e fundador do Renova BR com financiamento do Luciano Huck e de outros empresários. O Luciano Huck foi o único mais importante que admitiu. Isso está público, está na imprensa. Ou seja, é uma organização empresarial que funciona como pivô político eleitoral, na verdade ele funciona como um verdadeiro partido se a gente entender partido no sentido ampliando, no sentido que dava o Antônio Gramsci. Tanto que os candidatos selecionam bolsistas e sofisticam e profissionalizam uma coisa que já existia no Brasil desde pelo menos os anos 80, como mostra a Virgínia Fontes no livro Brasil e o capital imperialismo, conversão mercantil filantrópica de ativistas.
Eles selecionam candidatos que são por exemplo mulheres, negros, jovens, de periferia, indígenas. Trabalham com essa coisa de representatividade bem como o Conselho. Essa é bem a linha do Conselho também, dessa direita liberal que, por exemplo, não está contra o aborto desde que ele seja pelas regras do mercado. Então eles são progressistas no campo da moral dos costumes e são totalmente neoliberais. Esses bolsistas passam por uma doutrinação neoliberal cujo cerne é equivaler a questão fiscal com a corrupção. Se você viola a lei de responsabilidade fiscal você é automaticamente um corrupto. Eles fazem essa manobra ideológica e as legendas eleitorais pelas quais esses candidatos vão ao pleito são meras legendas mesmo, porque quem forma eles é o Renova.
Claro que sempre há exceções, tem gente que fez e foi meio que não sabendo o que era talvez, e saiu, tem de tudo. Eu acho lamentável que partidos de esquerda caiam nessa grande armadilha, mas para eu comentar um caso específico já fugiria ao escopo do meu trabalho.
Em resumo, o Renova é uma da formas pelas quais o Conselho buscou intervir na política brasileira contemporânea. Uma outra forma foi toda a propaganda feita em torno o Sérgio Moro desde 2005. Ele é eleito como o juiz caçador de corrupção, lembra um pouco o Caçador de Marajás do Collor. Depois eles tiveram que fazer um certo mea culpa. Não quando saiu a Vaza Jato, só quando o Moro efetivamente sai do governo Bolsonaro é que o Brian Winter, editor-chefe da Americas Quartely, vai fazer quase que um mea culpa da grande propaganda que eles fizeram do Sérgio Moro e da Lava Jato.
UàE: O Conselho das Américas tinha uma preferência, entre os candidatos que estavam concorrendo nas eleições de 2018, que não era pelo Bolsonaro, mas o aceitaram bem, principalmente por causa da figura do Paulo Guedes. Como é a relação entre eles?
Rejane: Depois que eu finalizei e entreguei a tese eu parei um pouco de acompanhar o que eles estão escrevendo sobre o Bolsonaro, mas até onde eu acompanhei, que foi principalmente 2018 e início de 2019, os candidatos preferenciais seriam o Geraldo Alckmin ou a Marina Silva. Essa é a fala de uma das mesas que eu analisei, composta pelo Paulo Sotero, que é do Movimento Brasil Competitivo e Elcior Santana.
Eles tinham preferência pela direita liberal tradicional e achavam o Bolsonaro uma figura meio perigosa, a apologia que ele faz à ditadura era muito explícita e o Conselho das Américas hoje quer justamente apagar essa imagem de que algum dia teve relações com a ditadura. Eles não querem de jeito nenhum serem conhecidos como entidade que colaborou diretamente com as ditaduras, por isso eles deixavam isso bem claro: “Bolsonaro é autoritário, o guru dele é um cara meio maluco, o Olavo de Carvalho, esse troço aí é meio esquisito”. Mas a própria grande burguesia brasileira, ativa ou passivamente, aceitou ele. Era qualquer coisa a não ser o PT. Então não sendo o Haddad estava valendo, no final das contas foi isso. Não houve nenhum importante empresário ligado ao Conselho das Américas, por exemplo, que tenha chamado o voto no Haddad, isso esteve fora de cogitação. A volta do Haddad seria “a volta do populismo”, a volta do governo petista seria “um desastre”, “uma Venezuela”.
O Conselho tinha, em relação ao Paulo Guedes, uma confiança mínima, básica, porque é um Chicago Boy, mas eles têm intelectuais muito mais sofisticados, eles acham o Paulo Guedes meio old school demais, ele prega uma doutrina de choque que já é obsoleta nos tempos atuais. Eles gostam do Paulo Guedes porque ele é neoiberal, mas têm um grande ceticismo em relação a se ele consegue efetivamente aprovar a agenda das contrarreformas, que é a prioridade número um. A questão que eles se faziam era “Can Paulo Guedes deliver?” “Paulo Guedes consegue entregar?”. Isso exige condições sociais e políticas. Não é tão fácil assim privatizar tudo e estamos vendo agora como realmente não está sendo tão fácil.
Eles vão criticar de uma forma banal os ataques à imprensa, por exemplo, mas é uma crítica que não chega muito longe de ser uma campanha ou fazer parte de uma crítica mesmo ao governo, dizer por exemplo: “com esse governo não podemos negociar”. Não, pelo contrário! Eles fizeram diversos eventos já com quadros de ministérios do Bolsonaro. O próprio Bolsonaro foi em 2017 na sede do Conselho em Nova York para se apresentar, todo simpático.
Eles não podem apoiar explicitamente, eles tem que fazer algumas críticas publicamente, mas eles vão estar a favor de um governo e, se for necessário, ter uma grande repressão para aprovar as contrarreformas eles vão, acredito eu, fazer como nos anos 70. Mas aí já é futurologia e não está no escopo da minha tese.