Opinião
Não pense em crise, vá para a aula: o novo “novo normal” da Lemann
Para a Fundação Lemann, escolas devem reabrir o quanto antes
Nos últimos dias temos visto um relaxamento das medidas de isolamento social no país inteiro. Circulam fotos de praias lotadas, festas, movimento em shoppings, etc. A pressão por parte de setores da sociedade, como lojistas e comerciantes, além da necessidade de contenção da crise econômica que nos assola desde antes da pandemia uniram forças na construção do argumento de diversos prefeitos e governadores para a “reabertura econômica”. Apesar disso, há um em especial que vem buscando meios de retomar a normalidade: as escolas.
Na última quarta-feira (2), em entrevista à Folha de S. Paulo, Denis Minze, diretor-executivo da Fundação Lemann, defendeu a retomada das aulas presenciais com urgência pautando-se no fato de que muitos estudantes estão em sofrimento psíquico por causa do isolamento e que o atraso em suas formações escolares acarretaria em um prejuízo quase irreparável em suas vidas. Ainda, ele afirma que precisamos aprender a conviver com o vírus.
“É uma discussão que tem que levar em conta três grandes aspectos. De um lado, as questões sanitárias, que é onde há maior ênfase da discussão atual. Em segundo lugar, o risco de aprendizagem, o que significa ter dezenas de milhões de alunos no Brasil privados de ter aulas de qualidade. E, por último, mas não menos importante, a saúde mental dos alunos.” (Denis Minze, à Folha de S. Paulo).
A paralisação das atividades presenciais de ensino, decretadas tão logo a pandemia alcançou o país, delimitou para muitos o início de um longo período de isolamento social. Com a paralisação, quase imediatamente instituições privadas introduziram seus modelos de ensino à distância, nomeando de “ensino remoto” a fim de dar uma nova cara aquilo que já era conhecido.
Seguindo o passo das instituições privadas, o Ministério da Educação também pressionou a educação básica à adesão ao ensino remoto, em especial no ensino médio com a manutenção do ENEM. O discurso ganhou legitimidade até entre as universidades públicas, que aderiram quase que em unanimidade a esse “novo normal”.
Conforme avançou a pandemia no país sem uma política firme de contenção da propagação do vírus, sindicatos patronais das escolas privadas começaram a pressionar pela retomada presencial das aulas, inclusive veiculando vídeos acusando os estudos sobre o isolamento social de estarem “confundindo” a população.
Agora, estacionados em altos índices de contaminações e mortes, a retomada presencial chega nas escolas públicas, sendo anunciado em diversos estados.
Em Manaus, a cidade que foi marcada pelo caos no sistema funerário e a primeira a retomar as aulas presenciais, podemos ver um triste exemplo do que significa a reabertura das escolas.
Após a retomada presencial, dos 534 testes rápidos aplicados em professores, 30% testaram positivo. A categoria, com o amparo de pais e estudantes, decretou greve e realizaram diversos protestos. Demais estados que decretaram o retorno tem seguido a mesma tendência de aumento do número de casos.
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Na entrevista, Minze inclusive afirma que a pressão de “certos grupos” contra o retorno presencial é considerada em detrimento de “dados” por questões eleitorais. É uma defesa fácil de se fazer quando seleciona-se a dedo os dados que se quer apresentar, como uma pesquisa que aponta aumento de ansiedade e tristeza em jovens na pandemia.
Esses argumentos de saúde mental a qual Minze recorre escondem os reais motivos da ansiedade e do estresse de crianças e adolescentes. A angústia da solidão não está apenas no isolamento, mas da falta de perspectiva de que o isolamento acabe pois ele sequer alcançou a maioria da população pela falta de uma política séria de combate a pandemia. Para adolescentes, em especial as meninas, o trabalho doméstico aumentou e recai sobre elas também a necessidade de cuidar de irmãos mais novos, além de precisarem dar conta do ensino remoto, que amplia a angústia da solidão ao forçar uma autonomia que não é possível no ensino.
Essa aparente preocupação do diretor-executivo da Fundação Lemann com a educação pública, que também foi expressa quando o assunto era a implementação do ensino remoto, não pode ficar descolada de um outro momento em que o próprio Lemann expressou entusiasmo com a crise.
“O que eu gosto mais é que toda crise é cheia de oportunidades”.
Nesse momento as empresas da educação estão passando por uma intensa crise, com alta evasão e inadimplência. As demissões em massa de professores não dará conta de manter seus lucros mais ou menos estáveis. Portanto, assim como outros setores, a melhor estratégia é construir o “novo normal” mais uma vez. Se antes era antiquado não aderir ao ensino remoto, agora o isolamento social é uma “confusão” que escolas se mantenham fechadas para resguardar a vida da comunidade que a compõe.
Não se difere, portanto, esse discurso dos muitos outros proferidos pelos políticos mais reacionários e negacionistas, como o próprio presidente Jair Bolsonaro. Inclusive é com o mesmo objetivo que recorrem a esse retorno à normalidade — garantir lucros e garantir que a classe trabalhadora arque sozinha com as consequências tanto da crise sanitária quanto da econômica.
Para que esse retorno fosse mais aceito entre a população, o ensino remoto cumpre um papel importantíssimo de garantir que reine sobre nós ares de normalidade que são falsos. Agora, com o quadro de ampla maioria de estudantes tendo essa experiência, o número de mortos pelo Covid-19 não significa mais nada.
A luta dos professores e demais setores contra a retomada presencial das aulas precisa ser apoiada por todos, pois se efetivada, tal retomada significará maior circulação do vírus, maior número de contaminados e a manutenção desse caos que estamos vivendo hoje. Escolas não podem ficar fechadas para sempre, mas enquanto durar a pandemia que elas fiquem bem fechadas e todos em casa.
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