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O estudante Ariel* conta um pouco de suas experiências ao longo desses meses:
“Não sei os detalhes da adoção do EaD na USP, mas lembro que logo que começou a pandemia os professores nos comunicaram que teríamos aulas remotas e se viraram para fazê-las da melhor maneira possível. Depois de pelo menos 1 mês de EaD foi que houve uma mobilização do centro acadêmico(dos estudantes) do meu instituto (não da reitoria) para saber se os alunos de graduação do ICB [Instituto de Ciências Biológicas] tinham acesso à internet e se estavam ok tendo que cursar matérias a distância. (…) No CRUSP [Conjunto Residencial da USP] não tem wifi nos apartamentos, os alunos têm que usar as salas de estudos dos próprios prédios e que são compartilhadas com os outros moradores. Em situação de pandemia em que eles estavam fazendo quarentena total, é muito arriscado compartilhar a sala de estudos com outras pessoas, principalmente pras mães que moram lá com os filhos. Não sei se eles tiveram a possibilidade de acompanhar as aulas EaD, porque em março a USP não fez nada…
Não tive muita experiência com EaD pois comecei o semestre cursando 4 matérias e terminei cursando só uma. (…) Tinha me inscrito mas não cursei: uma matéria de exatas , eu não estava conseguindo acompanhar e fazer os exercícios sozinho e, por mais que o professor e o monitor fossem bons e dispostos a tirar todas as dúvidas, realmente preciso de alguém me explicando presencialmente pra conseguir fazer; a outra era totalmente presencial em outro instituto, então não teve como o professor dar aulas EaD já que temos que ir ao ateliê para fazer as atividades práticas; por fim, a última era a matéria de TCC, que no meu curso é um projeto científico que tem que ser feito em laboratório. Basicamente fazemos uma iniciação científica e depois a transformamos em monografia. E com a pandemia praticamente todos os laboratórios do ICB fecharam, então vou levar um ano a mais para me formar.
Eu faço o curso Ciências Fundamentais para Saúde do Instituto de Ciências Biomédicas, o qual é focado na parte de pesquisa das diversas áreas da saúde (anatomia, fisiologia, biologia celular, farmacologia, parasitologia, imunologia e microbiologia), então esse curso é composto de matérias (a maioria teórica sem parte prática), estágios em laboratórios e iniciação científica, que é nosso TCC.
(…)
Que saudade que eu estou de participar da vida universitária! Sinto que perdi um ano de vivências que me formam como pessoa(…) Além da vida acadêmica, projetos de cultura e extensão, esportes com a atlética, oficinas, palestras, teatros, apresentações de orquestra e interações sociais diversas são extremamente importantes pra deixar minha vida acadêmica – enlouquecedora e estressante – mais leve e saudável. Mas claro, sou totalmente a favor da quarentena!
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O financiamento público é fundamental para o desenvolvimento científico do Brasil. A maior produção de pesquisa científica vem de universidades públicas e as descobertas atingem diretamente a sociedade. Pode levar um tempo, mas atingem. Na área da saúde, por exemplo, a verba vem principalmente do CNPq, CAPES e FAPESP (no estado de SP) e são elas que dão os salários (mais conhecido como bolsa) pra quem produz ciência no Brasil, que são os pesquisadores/professores, pós graduandos e graduandos. Sem essa verba proveniente do governo, não tem como estes pesquisadores fazerem pesquisa, porque muitas vezes os pesquisadores ficam até 12h dentro do laboratório trabalhando, têm que cumprir metas, prazos, ter resultado de experimentos que muitas vezes conta com vários imprevistos… E aí se esses pesquisadores não tiverem as bolsas/salários como que sobrevive no mundo real tendo que pagar conta de casa, transporte e comida? Não dá, ninguém vai trabalhar de graça… O salário já é pouco, cortando a verba ainda piora pra todo mundo (literalmente). Fora que essa verba também financia o projeto de pesquisa em si, sendo utilizada para comprar equipamentos para os experimentos e todos os materiais, biológicos e não biológicos, que são necessários para o desenvolvimento da pesquisa. Por exemplo, neste momento há diversos laboratórios trabalhando para entender a COVID, como ela funciona, suas características e como o vírus se comporta dentro do nosso corpo, nos diferentes órgãos e estados fisiológicos. Para isso, muitos pesquisadores têm trabalhado incansavelmente enquanto nós podemos ficar em casa. Imagina se eles estivessem em casa? Não teríamos vacina em desenvolvimento e não saberíamos nada relacionado a esse vírus, consequentemente estaríamos tão perdidos como quando a mídia falou sobre ele pela primeira vez logo que apareceu infectando seres humanos. Vi reportagens dizendo que, com o nosso comportamento de comer cada vez mais animais diferentes (isso sobre capitalismo e seres humanos, e não sobre uma cultura em específico) e domesticar espécies exóticas e selvagens, além do desmatamento que causamos que tem como consequência a aproximação de diferentes espécies com seres humanos, no futuro (não tão distante) mais vírus que infectam outras espécies podem sofrer mais mutações e acabar contaminando seres humanos também. Ou seja, é esperado outras epidemias futuras e essa experiência com a COVID pode ser utilizada como aprendizado para sabermos como lidar com as novas que podem vir a aparecer. Assustador, não é?”
Sobre a condição de acesso à internet dos estudantes, a página “USP contra o EaD” publicou um relato explicando as medidas tomadas pela Universidade:
“As aulas presenciais foram suspensas no mês de março. No dia 06 de abril, por comunicado, foi informado que os alunos com dificuldades de acesso à internet receberiam kits com modems ou chips para esses fins. As faculdades, por e-mail no dia 13 de abril, pediram que seus alunos respondessem se precisariam ou não. A disponibilidade dos kits veio a partir do dia 11 de maio, quase 2 meses após o início das atividades remotas. No mesmo dia 11, alunos do curso de Letras, por exemplo, foram informados que a quantidade de kits era pequena e teriam que confirmar novamente a necessidade. No dia 18 de maio, foi informado que os kits seriam comprados e distribuídos nos próximos dias. No último dia 26, a FFLCH enviou uma lista (154 nomes) de alunos “contemplados” com o auxílio.
Desde o início da quarentena a reitoria se manteve firme com relação a continuidade, entendendo que o único problema dos alunos é o acesso à internet. No entanto esse auxílio – tão falado e valorizado pelo reitor desde o início – foi deixado para a hora do “amém”, quase 3 meses após o início das atividades.
Agora, os alunos prejudicados por esse modelo de ensino excludente, além de todos os outros problemas que estão enfrentando, que corram atrás de colocar em dia quase 3 meses de atividades, pois sabemos que enquanto uns professores passaram conteúdos moderadamente, outros abarrotaram os alunos como se não houvesse amanhã. Isso, pensando de forma bem otimista que esses kits realmente vão funcionar e que TODOS receberam/receberão.”
Os alunos da USP nesse momento já concluíram o semestre de 2020.1 e estão em recesso escolar para o retorno do semestre 2020.2 em EaD.
*A pedido do estudante, foi adotado um pseudônimo