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Opinião

Servidores Públicos: quem tem privilégio?

Por Flora Gomes, redação do Universidade à Esquerda
15 de novembro, 2019 Atualizado: 20:34

Na última semana, parte do pacote intitulado Plano Mais Brasil do Governo Bolsonaro apresentou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 189/2019, nomeada como “PEC Emergencial”. A proposta traz medidas cujos impactos representam amplas fragilidades ao regime de trabalho estatutário dos servidores públicos. Sob argumento de que haveria uma imperativa necessidade de contenção de gastos, os ditos “privilégios” dos servidores públicos poderiam poupar cerca de 25 bi à União.

A primeira gramática equivocada na qual esse pacote está inserido é a de uma equivalência a priori: a de que todos os servidores públicos pertencem à classe dos privilegiados. Não é possível tratar com homogeneidade um setor da sociedade tão diverso. Um professor da educação básica, submetido a terríveis condições laborais, cuja formação e ambiente de trabalho estão cada vez mais precários, não pode ser igualado em tratamento a um burocrata histórico do Estado brasileiro, como é o caso do Arnaldo Barbosa, responsável por apresentar o Programa Future-se. 

Leia também: Arnaldo e o Future-se

À título de ilustração, sem sequer adentrarmos nas específicas condições laborais aos quais esses servidores estão submetidos, lancemos uma luz comparativa em termos de salários. De acordo com dados do portal da transparência, Arnaldo recebe uma renda bruta de 20.275,60 reais, o equivalente a cerca de 20 salários mínimos [1]. Ainda segundo o mesmo canal, o atual Ministro da Educação Abraham Weintraub recebe mensalmente um salário bruto de 30.934,70 reais [2]. Já  o piso salarial para o cargo de Professor de Educação Infantil e Professor de Educação Infantil e Ensino Fundamental (CAT 1) em nível municipal na capital paulista é de R$ 1.523,67 [3]. Apesar de ambos serem servidores públicos, a remuneração dessas categorias é extremamente desigual. 

No tocante às garantias, um servidor público federal do Hospital Universitário como o da UFSC tem acesso a auxílios para transporte e auxílio natalidade ou pré-escolar [4]. Esses auxílios nada mais são do que a segurança, tanto ao trabalhador quanto ao próprio empregador, de que esse trabalhador terá seu deslocamento e reprodução familiar mais ou menos assegurados. Esses valores recebidos, além de ínfimos (no caso do auxílio natalidade o valor atual é cerca de 630 reais [5], quantia muito menor do que os custos iniciais de um filho), não representam um privilégio, mas garantem um pequeno nível de estabilidade ao servidor para que esse continue realizando suas tarefas laborais.

Já benefícios de certo servidores podem ser caracterizados como privilégios quando representam o acesso exclusivo a uma riqueza social absurda, por meio de compra de mercadorias exclusivas a essa parcela estreita da sociedade. Poder realizar 29 viagens desde o mês de junho, como foi o caso de Arnaldo [6] em um avião particular, não é uma possibilidade material para a grande maioria dos servidores públicos, e, evidente, pode ser caracterizada como privilégio. A narrativa de que todos os servidores públicos são um setor privilegiado apaga essas diferenças que, no fundo, deveriam nortear o debate de quem são os verdadeiros privilegiados. 

Para além da remuneração em si e o acesso a determinadas garantias, é preciso inserir esse debate no atual cenário laboral brasileiro. Tratar garantias mínimas enquanto privilégios é possível quando direitos sociais são estabelecidos politicamente enquanto gastos do Estados, podendo, dentro dessa lógica, serem dizimados em momentos de “crise fiscal”. Historicamente, os Estados capitalistas passaram a distribuir o fundo público – composto inclusive por apropriação de parte dos salários dos trabalhadores por meio de tributação – por meio de políticas sociais que garantiam certas condições à reprodução de vida da classe trabalhadora. Na atual conjuntura, no qual esse fundo é apropriado pelo capital para tentar solucionar sua crise, um conjunto significativo de trabalhadores estão submetidos a condições absurdas de exploração, dependentes de aplicativos de serviços ou de terceirizações, regimes de trabalho marcados pela ausência de acesso a direitos históricos da classe trabalhadora. Nesse momentos de crise profunda, o acesso à mínimas garantias, como férias, progressão de carreiras, segurança no trabalho, entre outros, ao serem retirados enquanto direitos amplos no atual cenário laboral brasileiro, tornam-se (ainda) algo exclusivo de certas camadas da classe trabalhadora. 

Faz-se urgente um combate efetivo aos privilégios na sociedade brasileira. Entretanto, é necessário estarmos atentos a quem são os alvos prioritários dessa luta. Em um momento no qual os mínimos direitos são tratados como privilégios, a atuação da classe dominante tende imperar pela quebra de solidariedade no interior da classe trabalhadora, fazendo os trabalhadores lutarem entre si pela distribuição da miséria. É fundamental que os trabalhadores unam-se não apenas para garantir garantir e ampliar esses direitos históricos, mas para que estejam na mira aqueles que realmente são os privilegiados na sociedade.

[1] http://www.portaltransparencia.gov.br/busca/pessoa-fisica/2505796-arnaldo-barbosa-de-lima-junior

[2] http://www.portaltransparencia.gov.br/servidores/5506210

[3]https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/Tabela%20de%20Remuneracoes%20Agosto_2018.pdf

[4] http://www.hu.ufsc.br/setores/cagp/beneficios/

[5] https://www.servidor.gov.br/gestao-de-pessoas/manual-de-procedimentos/manual-auxilios-e-beneficios/auxilio-natalidade

[6] http://www.portaltransparencia.gov.br/viagens/consulta?situacao=1&beneficiario=10583134&ordenarPor=ate&direcao=desc

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