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Opinião

Bolsonaro decreta MP que revoga direitos trabalhistas durante pandemia

Por Maria Alice de Carvalho, redação do Universidade à Esquerda
26 de março, 2020 Atualizado: 22:27

No último dia 22 o governo Bolsonaro publicou Medida Provisória (MP) nº 927 que rege sobre as leis trabalhistas durante o período de pandemia do COVID-19 no Brasil. Assim que publicada a MP, diversos setores manifestaram indignação e crítica, mais especificamente, ao artigo 18 da MP, o qual dizia que:

“Art. 18. Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o contrato de trabalho poderá ser suspenso, pelo prazo de até quatro meses, para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional não presencial oferecido pelo empregador, diretamente ou por meio de entidades responsáveis pela qualificação, com duração equivalente à suspensão contratual.”

Já no dia seguinte (23), diante da receptividade negativa inclusive de parlamentares, Bolsonaro  revogou o art. 18 através da MP 928, a qual realiza também alterações na Lei nº 13.979, de acesso à informação.

Logo após a manifestação do presidente em seu Twitter de que revogaria o art. 18 da MP 927, houve comemoração na internet por alguns setore que, inclusive, consideraram isso como uma vitória das mobilizações da esquerda. Ou seja, foram cometidos dois erros, o de achar que a decisão do presidente baseou-se na mobilização da esquerda brasileira – ausente até o momento – e o de achar que o mal da MP 927 resumia-se a esse artigo específico. Até o momento não há vitória alguma.

Apesar de não mais permitir, de forma literal, que o contrato de trabalho seja suspenso por até quatro meses, a MP deixa a mercê da “negociação” individual, entre empregador e empregado, a permanência do vínculo empregatício, não garantido a estabilidade dos trabalhadores, vide art. 2.

“Art. 2º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição.”

A suspensão do vínculo empregatício, assim, permanece sendo uma possibilidade e sugestão àqueles empregadores que não desejarem, por não ser lucrativo, manter o pagamento dos trabalhadores durante o estado de calamidade provocado pela pandemia do COVID-19. Portanto, àqueles que estão preocupados pensando que a quarentena impedirá os trabalhadores de receber, causando fome e desgraça, tenho a dizer-lhes que se há algo que está jogando os trabalhadores ao desalento, à fome e a morte, de longe é a quarentena, mas sim o governo e suas leis para manter o lucro do capital.

A MP 927 tira do âmbito coletivo e político as negociações referentes aos direitos trabalhistas, colocando-as sob total poder dos empregadores que, diante dos trabalhadores que individualmente forem negociar seu sustento de vida, optarão obviamente pelo seu lucro, até mesmo pois como disse sabiamente o filósofo Vladimir Safatle “que aprendam de uma vez por todas: neoliberais não choram. Eles fazem conta, mesmo quando as pessoas estão a morrer à sua volta”.

Dentre as atrocidades da MP 927, há ainda um outro artigo que interfere diretamente na estabilidade dos trabalhadores, o art. 29, o qual não reconhece que aqueles que se contaminarem com o COVID-19 – podendo vir a falecer – por serem obrigados a estarem presentes em seu local de trabalho durante a pandemia foram contaminados pela doença por conta de sua atividade de trabalho.

“Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.”

Ou seja, caso o trabalhador que foi obrigado a se manter produtivo para lucro de outros, de forma desumana, durante pandemia do COVID-19 – se expondo ao vírus por precisar se locomover pela cidade, por seu trabalho não garantir as condições de prevenção, entre outras questões – contraia o vírus, este não gozará do direito aos 12 meses de estabilidade, garantidos por lei, em caso de doenças laborais, nem receberá os 8% de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) por mês, o qual o patrão é obrigado, por lei, a depositar na conta do empregado em caso também de acidente laboral.

Sendo assim, além de contrair o COVID-19 devido às suas condições de trabalho, o trabalhador, caso não morra, não receberá durante seu tempo de afastamento por doença e poderá ser demitido sem garantia de direito algum. A não ser, claro, que ele milagrosamente consiga comprovar que contraiu o vírus exatamente no seu local de trabalho, o que só colocado como condição na MP, por o governo saber que é impossível. Em caso de morte, a família do trabalhador receberá pensão 40% menor daquela que teria direito em caso de morte que tenha nexo causal com o trabalho.

Há ainda diversas outras questões problemáticas da MP 927, que colocam o interesse individual do empregador acima dos direitos trabalhistas e da vida de muitos, como o art.10 que coloca a demissão como um direito do empregador, mesmo em tal situação de calamidade, ao invés de garantir os empregos e salários da população; o art. 4 que permite que o empregador altere o regime presencial para o teletrabalho independente da existência de acordos coletivos ou até mesmo individuais.; a permissão, no art.14, de que aqueles que continuarem trabalhando poderão ser submetidos a trabalhar sem limite de jornada e sem receber por horas extras – as quais serão registradas em um banco de horas, para a compensação no prazo de até dezoito meses, após encerramento do estado de calamidade pública, de acordo com o interesse exclusivo do empregador.

Além de permitir aos empregadores antecipação de férias individuais, concessão de férias coletivas, aproveitamento e antecipação de feriados – quando na verdade estão todos confinados em suas casas para garantir suas vidas -, suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho – quando estamos em meio a uma pandemia – e direcionamento do trabalhador para qualificação.

E, por fim, no Art.36, “consideram-se convalidadas as medidas trabalhistas adotadas por empregadores que não contrariem o disposto nesta Medida Provisória, tomadas no período dos trinta dias anteriores à data de entrada em vigor desta Medida Provisória.”.

O que quero apontar com esse texto, além de melhor informar sobre a MP 927, é que nenhuma vitória foi conquistada por nós até então no que diz respeito às medidas que o governo está tomando para administrar a crise em meio à pandemia do COVID-19. O que estamos presenciando no Brasil é uma ainda maior flexibilização das relações de trabalho, as quais sabemos que já se encontravam extremamente flexibilizadas, para garantir o lucro e padrão de reprodução do capital.

As medidas que vêm sendo tomadas são desumanas e negligenciam a vida de todos nós, trabalhadores, já tão considerados descartáveis pelo sistema capitalista. Eles não se importam com nossas vidas, com nossa subsistência e não pensam ser relevante chorar nossas mortes.

Nossa luta, seja em meio à pandemias ou não, não deve girar em torno de garantir o funcionamento de grandes ou pequenas empresas, de uma economia que gere lucros a mercê da espoliação e massacre de nós mesmos; mas sim por uma sociedade construída por nós, que valorize nossas vidas e que não funcione colocando o capital acima dos trabalhadores, acima da humanidade.

*Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e podem não refletir a opinião do jornal.

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